quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Obrigada, obrigada, obrigada mil vezes!!!!

Cada acesso, cada comentário, cada compartilhamento no Facebook me coloca mais perto do meu alvo central: Fazer conhecido o poder de Deus para transformar vidas que se deixam moldar por suas poderosas mãos.

Essa história de ficção da V e do Sérgio encontra eco em muitas vidas mundo à fora e todas elas podem experimentar dessa Graça redentora chamada Cristo.

Agora essa história pode chegar às mãos e vidas daqueles que buscam um simples entretenimento, mas que poderão ser surpreendidos por verdades eternas que mudarão suas vidas para sempre! 
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Mas uma vez: Obrigada... 1000 vezes!!!


sexta-feira, 24 de junho de 2011

Capítulo 06 - Comissão

Capítulo 06

Comissão

Pronto! Finalmente meu quarto estava arrumado. Queria deixar tudo organizado, antes de dormir para nossas hóspedes que chegariam pela manhã. Um grupo de cinco jovens, três moças e dois rapazes, estava vindo para Brasília para divulgar o próximo Congresso Nacional de Jovens que aconteceria em São Paulo.
Eles iriam a cada uma das regiões onde nossa denominação tinha igrejas. Já haviam passado pelo Sul e agora vinham para o Centro-Oeste, de onde seguiriam para o Nordeste. Estávamos no mês de outubro e o Congresso seria em fevereiro do próximo ano. Teríamos pouco mais de três meses para nos organizar.
          Eu me ofereci para hospedar as moças. Minha casa era grande e poderiam ficar duas no quarto de hóspedes e uma comigo, no meu quarto. Os rapazes ficariam na casa de Bernardo.
          Outra coisa que estava consumindo meu tempo – e meus nervos – era a minha colação de grau. Seria no dia em que os jovens de São Paulo chegariam. Nós havíamos avisado sobre o evento, mas como eles tinham passagens compradas para o Nordeste saindo de Brasília, iria furar o esquema deles, então viriam preparados para irem à minha colação. Confesso que estava totalmente sem graça com relação a isso. Deixamos bem claro para as garotas que elas estariam à vontade para não irem se assim quisessem, mas acho que, por uma “política de boa vizinhança”, elas aceitaram educadamente participarem do evento. Como Bernardo iria com a família dele, os rapazes também aceitaram o convite.
         Tomei um banho demorado e fui para cama cedo. Não queria me atrasar na chegada ao Aeroporto. Verifiquei o cartaz que tinha pintado essa manhã – ideia de Bernardo – e fui deitar. Demorei para pegar no sono. Não sei se pelo cansaço, pela visita de amanhã ou se pela formatura, mas estava muito agitada para conseguir dormir. Olhei para minha beca pendurada no cabide do lado de fora do armário. Como passou rápido!
           Conheci Renato no meu terceiro semestre de faculdade. Tinha vinte anos à época. Era impossível não contar minha vida a partir de Renato. Eu tinha consciência disso.
      Agora estava com vinte e três anos, formada em artes plásticas, e trabalhando numa Casa de Restauração de Artes. Deveria estar feliz – e de certo modo até estava – mas ainda havia um espaço vago, o enorme buraco que Renato deixara. Eu queria não pensar nisso, mas era quase impossível.
          A família de Renato já estava em Brasília. Passamos o dia inteiro juntos. Eles estavam hospedados na casa de um tio de Renato que morava aqui. A presença deles e toda essa festividade traziam à tona, com força, a ausência de Renato.
       Eu havia feito uma promessa para mim mesma que não iria choramingar pelos cantos. Meus pais estavam felicíssimos com minha formatura e não mereciam menos que minha completa presença e gratidão a eles.
        Lembrei-me da conversa que tivemos dias antes, quando eles insistiram em me dar a passagem para Paris. Era um projeto antigo. Assim que fui aprovada no vestibular, eles me prometeram que me dariam uma viagem para conhecer o museu do Louvre em Paris. Naquela época eu fiquei empolgadíssima com a ideia e não via a hora de conhecer pessoalmente algumas das maiores obras de arte que o mundo já viu. Mas depois da morte de Renato... Eu não queria viajar. Não agora. Não desse jeito.
          Fechei os olhos com força para tentar dormir, fiquei quieta deixando que meu corpo relaxasse até que os meus olhos diminuíram a pressão, e eu entrei naquele primeiro estágio do sono quando seus últimos pensamentos se misturam com o sonho.
         Minha formatura se misturando com meus pais e a família de Renato. Eu estava vestida com a beca e procurava por alguém na multidão, mas ele não estava lá. Todos sorriam para mim, me abraçavam e eu não conseguia entender porque ele ainda não havia chegado. Então eu o vi, vindo em minha direção, mas estava diferente. Não era Renato. Ele sorria para mim com um buquê de flores na mão. O que mais me assustou no sonho é que minha angustia havia passado. Era por ele que eu procurava. Meu rosto se iluminou e eu corri para os seus braços. Fiquei aninhada naquele abraço protetor me sentindo segura e completa. Não quis levantar os olhos, queria continuar ali. Eu estava feliz...
         Acordei sobressaltada com o meu celular despertando. Eram sete horas da manhã. Passei a mão pela testa completamente atordoada. O sonho era tão real que eu quase podia sentir os braços dele ainda ao meu redor. Que sonho foi aquele? Era a primeira vez, em quase dois anos, que eu não sonhava com Renato. Fiquei intrigada, mas não tinha tempo para pensar nisso agora. Nossos hóspedes chegariam às oito horas e viriam direto tomar o café da manhã em minha casa.
        Arrumei-me, peguei o cartaz, liguei para o Bernardo e fomos buscá-los. Flavinha iria conosco. Eles finalmente estavam namorando.
          A lembrança daquele dia sempre me fazia rir. Estava em casa separando alguns artigos para o trabalho de restauração de uma estátua, quando os dois entraram em meu quarto. Ambos estavam de braços cruzados e me encarando com os olhos estreitos e a boca apertada, numa expressão clara de ameaça.
         _ O que foi? – perguntei na maior inocência – O que aconteceu?
Eles caminharam juntos em minha direção – com certeza tiveram muito tempo para planejarem isso – e, um de cada lado, me chaparam um beijo na bochecha.
        _ O que significa isso? – perguntei aturdida
        _Você é a melhor amiga do mundo! – Flavinha falou efusivamente me apertando os ombros num abraço desengonçado.
        _ Meu Deus, o que eu fiz? – perguntei olhando para Bernardo.
        _ Você guardou o nosso segredo. – ele falou sorrindo
        _ Então... – comecei gaguejando – Quer dizer que... vocês... vocês... – meu olhar corria de Flavinha para Bernardo – Vocês finalmente...?
         _ É V. A gente tá namorando. – A Flavinha me ajudou com as palavras. Eu estava guardando aquilo há tanto tempo que tive dificuldade em concluir a frase.
       Levantei e comecei a saltar e gritar no quarto. Flavinha me abraçou e me acompanhou naquela “dancinha” maluca, depois Bernardo se juntou a nós duas gritando e pulando. Minha mãe apareceu na porta e ficou sorrindo daquela cena. Parecíamos ter cinco anos de idade.
           Eles me contaram como tudo aconteceu, de como Bernardo foi até a casa de Flavinha conversar com os pais dela e de quando foram à igreja conversar com o pastor. Agora estava tudo certo. Eles eram oficialmente namorados. Fomos comemorar numa pizzaria, nós três. Eu pude finalmente contar aos dois o segredo de ambos. Ainda assim pensei que os dois fossem desmaiar enquanto eu falava sobre cada um. A Flavinha ficou corada, e Bernardo virou o “tomatinho hemorrágico”de sempre. Foi uma noite muito engraçada.
         Chegamos ao portão de desembarque com tempo de sobra. Ficamos fazendo planos para o congresso e conversando sobre minha formatura, que seria aquela noite. Meu estômago esfriava quando me lembrava disso.
       Acompanhávamos pelo painel de desembarque o horário do voo deles. Estava dentro do horário previsto. Seguimos para o portão indicado com o cartaz na mão. Eu havia pintado uma caricatura de cinco jovens com malas – três moças e dois rapazes – com camisetas do congresso e uma faixa por cima deles dizendo “Bem vindos a Brasília.”
        Começou o desembarque e, de cara, vimos um grupo vindo em nossa direção. Traziam apenas bagagens de mão, mochilas e bolsas de viagem.
           As três moças eram bem diferentes umas das outras. Uma era japonesa de cabelo despontado, a outra era uma negra alta de cabelos armados e tinha um sorriso muito simpático, a última parecia muito tímida, e era a mais baixa das três, de cabelo castanho e bem curtinho. Um dos rapazes se aproximou com um enorme sorriso. Era alto, usava óculos e tinha os cabelos ruivos como os de Flavinha. O outro estava mais atrás e nos cumprimentou com um meneio de cabeça e um meio sorriso, apontou a câmera em nossa direção e tirou uma foto, parecia ser o mais velho dos cinco. Foi o rapaz sorridente que se apresentou.
           _ Que recepção! – falou estendendo a mão para Bernardo – Vou querer levar esse cartaz. – disse nos cumprimentando com beijos no rosto.
          _ Deixem-me apresentar a nossa “gangue” de São Paulo. – ele continuou sorrindo com o sotaque paulistano característico – Essa é Saeko, a do meio é Bianca e a baixinha ali é Nicole, eu sou Marco e o grandão ali é o Sérgio.
Cumprimentamos a todos e fomos para os carros conversando sobre a viagem. Marco era o tagarela do grupo, falava tanto que os outros quase não disseram nada, na verdade apenas a Saeko e a Bianca disseram mais de uma frase. Nicole e Sérgio limitaram-se a comentar sobre a diferença de temperatura entre Brasília e São Paulo. Lá estava muito frio, enquanto aqui o tempo estava ameno. Eu levei as moças comigo e Bernardo e Flavinha foram com os rapazes.
No caminho tivemos oportunidade de conversar. Falamos do tempo, da viagem, do trabalho que eles estavam fazendo de promoção e da minha formatura. De novo deixei-as livre para ficarem em casa se estivessem muito cansadas. Sabia que elas teriam que viajar novamente em alguns dias, e elas poderiam querer descansar um pouco. Mas todas se mostraram muito simpáticas com a ideia de irem à minha formatura, principalmente Saeko, que parecia a mais falante e espevitada das três.
Isso me deixava ainda mais preocupada. A plateia só estava aumentando. Eu sentia que a “casca” da ferida estava muito fina, e pronta para romper ao menor toque, e ter um número considerável de pessoas prestando atenção em mim, só aumentava ainda mais minha tensão.
Em casa acompanhei as moças para levarem suas bagagens aos quartos, enquanto os rapazes foram para cozinha com Bernardo. Minha mãe já estava nos esperando.
Bianca e Nicole ficaram no quarto de hóspedes e Saeko ficou no meu quarto. Quando fomos nos juntar a eles na cozinha, todos já estavam sentados nos aguardando para a oração. Marco se ofereceu para orar e agradeceu pela refeição e por nossa hospitalidade. Ele parecia muito à vontade. De todos do grupo, Sérgio e Nicole eram os mais calados. Ela parecia realmente muito tímida, mas Sérgio parecia ser mais observador. Tinha um olhar um pouco tristonho, algo melancólico que conferia à sua expressão um ar de dor permanente, ou algo assim.
Tentei puxar conversa com Nicole para que se sentisse mais à vontade conosco. Ela sorria com um jeito muito meigo e respondia a tudo que eu perguntava, mas não passava disso. Então decidi deixá-la à vontade. Voltei-me para Sérgio com a mesma estratégia.
_ Então, Sérgio? Você já conhecia Brasília?
_ Já estive aqui anteriormente, há uns cinco anos. Mas estava a trabalho. – seu sotaque era mais suave que o de Marco, mas ainda tinha aquele “r” pronunciado, característico de paulistano.
_ Você trabalha com o quê? – perguntei puxando conversa.
_ Hoje eu faço consultoria empresarial, mas na época eu vim como diretor de uma empresa. – ele falava com simpatia. A voz era um pouco rouca...
_ Legal! Mas então você não conheceu mesmo Brasília? – perguntei em tom de brincadeira.
_ Acho que não. – ele falou também sorrindo – Foi uma viagem de dois dias apenas, e eu fiquei quase o tempo todo no hotel. Conheço o caminho do hotel ao aeroporto e vice versa.
_ Nosso tour será amanhã à tarde. – Bernardo disse animado – Queremos que vocês conheçam as belezas da nossa cidade.
As conversas permaneciam paralelas. Bernardo estava discutindo alguns detalhes do congresso com Marco e Bianca. Nicole estava conversando com Flavinha. Minha mãe conversava com Saeko, que aparentemente, era especialista em comida japonesa.
_ E você? – me perguntou Sérgio. – A formatura que iremos hoje é a sua?
Fiz uma careta.
_ É. Mas... é sério, vocês não precisam ir. Eu sei como formatura é chato, principalmente de alguém que vocês mal conhecem...
_ Deixa eu entender... – ele falou com um braço apoiado na mesa e o outro segurando a colher dentro da xícara. – Você não quer que a gente vá a sua formatura? – sorriu maliciosamente.
_ Não! – minha voz saiu mais alta do que eu pretendia, chamando a atenção das outras pessoas na mesa – Não! – falei mais baixo e sorrindo para ele.– Não é isso. Imagina?! Por favor, me perdoa se estou passando essa imagem. É que eu realmente quero deixá-los à vontade para dizer “não” se vocês não quiserem ir, mas seria um prazer tê-los por lá. – corrigi rapidamente.
_ Você não me parece tão empolgada assim... – Ele continuou
_ Dá para ver, é? – falei sem graça.
Ele sorriu assentindo, baixando os olhos para sua caneca.
_ Nervosa?
_ Acho que um pouco. Essa ideia de “multidão” me deixa meio tensa.
_ É o baile? – ele falou tomando um gole do café.
_ Não. Não vou ao baile. Minha turma não compartilha a mesma ideia de diversão que eu. – sorri – Meus pais farão um coquetel no salão da igreja mesmo, hoje à noite, só para os amigos e, é claro, vocês estão convidados. – sorri de novo.
Ele endireitou-se na cadeira sorrindo também.
_ O pastor Moisés mandou um presente de formatura para você. – ele falou casualmente.
_ Para mim? – falei sinceramente surpresa – Ah! Ele é muito querido... – suspirei – Você poderia... Não... deixa para depois. – continuei falando para mim mesma.
_ O quê? Quer buscar agora? Claro! Está no carro de Bernardo.
Levantei num salto.
_ Ber, empresta a chave do carro?
Bernardo, que estava concentrado na conversa, pegou a chave no bolso da calça sem me olhar. Agradeci e disparei para fora de casa.
O pastor Moisés era o meu pastor preferido. Ele já havia saído da nossa igreja há uns cinco anos. O tempo em que ele esteve conosco foi memorável.
Ele desenvolveu um trabalho muito intenso com os jovens. Foi nessa época que muitos juntaram-se a nós. Um deles era Bernardo.
_ Como ele está? – perguntei enquanto caminhávamos em direção ao carro.
_ Bem, como sempre. – ele sorriu enfiando as mãos nos bolsos da calça – Ele parece uma rocha inabalável, sempre sorrindo, sempre otimista.
_ Ele é muito especial... – falei com nostalgia.
_ É mesmo. – ele fez uma pausa e começou com um sorriso – Sabia que foi ele que me levou até Jesus? E também foi ele que me discipulou.
_ É? Que legal! – Ter o pastor Moisés como discipulador era um privilégio. Ele era um homem muito sábio e um profundo conhecedor da Bíblia. Tinha os dons de discernimento e sabedoria, e quando tinha uma intuição quanto a uma pessoa, investia pesado nela. Bernardo fora uma dessas pessoas e, hoje, reproduzia o que havia aprendido de forma espontânea. Prova disso era Rafael.
Abri o bagageiro do Celta de Bernardo e Sérgio pegou sua mochila, retirou de lá uma caixa azul e me entregou. Acariciei a tampa da caixa lembrando-me do rosto rechonchudo do pastor Moisés. Quando abri fiquei maravilhada!
_ Fotos? – eu amava fotografias, e o pastor Moisés sabia disso. No seu tempo de ministério, era ele a nossa “memória digital”. Fotografava todas as coisas que fazíamos e tinha o hábito de nos presentear depois com algumas delas. – Obrigada, Sérgio! – Me virei para abraçá-lo. – Por favor, “entregue” esse abraço ao pastor por mim.
_ Claro! – ele sorriu surpreso. Parecia até um pouco resistente em me abraçar. Foi um abraço frio e distante, o que me deixou sem graça.
Eu comecei a passar foto por foto. Havia algumas de ações dos jovens em creches e orfanatos, de peças de Natal, Páscoa, de encontros entre os jovens, na pizzaria, no parque... Mas uma foto em especial me chamou a atenção. Eu estava no parque da cidade tocando violino. Meus olhos estavam fechados, como sempre fazia, e meus cabelos estavam um pouco mais curtos, soltos e jogados para trás pelo vento. Era um daqueles raros dias em que eu estava de vestido. Eu me lembro que estava muito calor e coloquei um dos vestidos de verão que minha mãe havia comprado. Era um vestido na altura dos joelhos, com estampa delicada de flores azuis. Mas eu não estava exatamente no parque. Havia um fundo do Congresso Nacional e um pôr do sol fantástico atrás de tudo. A foto estava em tons de sépia e o resultado final era maravilhoso. Era como se a luz do sol tivesse tingido tudo com aquele tom dourado. Fiquei parada segurando a foto, admirando o excelente trabalho de montagem.
_ Meu Deus! Que lindo!
_ É. – ele falou olhando por cima do meu ombro. Parecia satisfeito. – Então devo dizer que você gostou? – ele falou sorrindo.
_ Se eu gostei? Eu amei! – abracei a caixa – E essa foto, então? Meu Deus! É perfeita!
_ Então você toca mesmo violino. – ele continuava com o mesmo tom satisfeito.
_ Por quê? Você acha que eu só estava posando para foto? – falei fingindo-me ofendida
_ Bom... É que não é um instrumento muito comum e, pelo visto, nem muito fácil. – seu tom de voz acompanhou a brincadeira
_ Oh... Acho que entendi... O senhor está duvidando da minha capacidade? – Falei sorrindo e destacando as palavras enquanto voltávamos para dentro de casa
_ Não exatamente. – ele segurou a porta para que eu passasse.
Entrei na cozinha mostrando as fotos. Minha mãe espalhou tudo na mesa. Como eu imaginei a foto mais comentada era a foto com o violino.
_ Você toca violino, V? – Saeko parecia em êxtase.
_ Desde os nove anos. – minha mãe respondeu orgulhosa
_ Dá um “palhinha” para gente, V? – Saeko estava com as mãos juntas fazendo cara de súplica. Foi seguida por palmas de incentivo de Flavinha, e logo os outros estavam acompanhado o coro de “toca, toca.”
Fui até o meu quarto, sorrindo, buscar meu violino. Peguei algumas partituras e voltei. Minha mãe havia conduzindo todos para a sala. Já estava acostumada com isso. Meus pais sempre pediam que eu tocasse para algum amigo quando alguém vinha nos visitar. “Esse orgulho bobo de pais...” – pensei
_ Vocês têm alguma preferência? – falei retirando o violino do estojo.
_ “Mas perto quero estar,” filha, é linda! – minha mãe se antecipou.
_ Mãezinha... Primeiro os convidados – todos sorriram.
_ Essa! Essa! Por favor! – Saeko batia palmas de excitação. – Não foi essa que tocaram no filme Titanic?
_ Essa mesmo! – minha mãe falava toda derretida.
Comecei a tocar. Como sempre fazia, fechei os olhos e deixei a melodia suave do violino me inundar. Nessa hora eu não tinha consciência de onde estava, e nem se havia alguém me observando. Eu gostava de tocar músicas de cor por esse motivo. Não precisava ficar olhando para a partitura nem percebendo as pessoas ao meu redor e isso, constantemente, me deixava nervosa, o que acontecia só no comecinho da música, porque logo eu estava completamente absorvida e flutuando entre as notas e acordes do som mágico do instrumento.
Quando terminei, Saeko estava chorando. Olhei para Sérgio que aplaudia com um olhar sombrio, algo entre a raiva e a frustração. Tentei sorrir para ele, mas ele não devolveu o sorriso, simplesmente desviou o olhar. Fiquei sem entender essa reação.
Saeko se levantou e veio me abraçar muito emocionada. Minha cabeça ainda tentava processar aquela reação de Sérgio. Ele parecia tão simpático há pouco tempo... Será que o violino trazia alguma recordação ruim para ele? Antes que me pedissem para tocar outra, eu guardei o violino. Não queria ser a causa de lembranças ruins para ninguém. De lembranças dolorosas eu entendia perfeitamente.
Bernardo se ofereceu para levá-los em casa para descansarem um pouco antes da minha formatura. “Vamos deixar as moças se arrumarem”, ele disse.
Acompanhei-os até a porta e me despedi de todos. Sérgio ficou por último.
_ Você se importaria se eu tirasse algumas fotos sua na formatura? – Seu sorriso parecia me pedir desculpas.
_ Claro que não! – sorri encorajando-o. Ele não precisava se desculpar por nada. Eu, melhor que ninguém, sabia como era transitar entre o mundo real e o mundo das recordações.
_Ok. Te vejo à noite. – ele se curvou para me dar um beijo no rosto. Permanecia com as mãos nos bolsos da calça.
_ Tá bom, então. Eu serei aquela de beca preta e faixa branca. – sorri, segurando seu braço enquanto ele me beijava. Ele tinha um perfume suave, meio cítrico...
Fiquei no portão até que o carro de Bernardo virasse na esquina. Pensei na minha agenda do dia. Depois do almoço iria para o salão. Minha mãe havia insistindo muito nisso. Por mim, me arrumaria em casa mesmo. Eu aceitei, mas impus alguns limites; nada muito “papagaiado’ e eu teria que olhar no espelho e me reconhecer.
Em casa as meninas já estavam se organizando. Elas ficariam conosco até quinta-feira. Como eles compraram pacote de viagem, tinham que permanecer um tempo mínimo em cada capital.
Eles estavam viajando com recursos próprios. Todos haviam marcado férias para essa data com a mesma finalidade.
Estavam bastante empolgados com a organização e investiram muito nesse congresso. O tema era “Jovens que Influenciam uma Geração,” e era a primeira vez que uma comissão fazia uma ação desse porte. A empolgação deles era contagiante, e já fazia parte do marketing do Congresso, mesmo que isso não fosse oficial.
Cada membro do grupo tinha uma função. Marco era o presidente da comissão e responsável pelo grupo; Bianca era a relações públicas e cuidava dos contatos entre as igrejas e o envio de material; Saeko era a secretária; Nicole a tesoureira e Sérgio era o responsável pela produção de material visual do congresso, por isso estava sempre com a câmera na mão.
Depois do almoço as meninas foram descansar e eu fui para o salão. Minha mãe ficaria em casa com elas até meu pai chegar do trabalho. Eu iria no meu carro, até porque precisava chegar mais cedo.
O salão foi mais indolor do que eu imaginava. Fiz as unhas com uma cor clarinha, arrumei o cabelo com uma escova que definiu meus cachos, fazendo-os cair suavemente pelas costas. Não estava artificial, e iria combinar perfeitamente com o meu vestido “estilo helênico”. Minha mãe havia escolhido para mim um modelo de vestido na altura dos joelhos num tom rosa chá e detalhes dourados que marcavam a cintura. Era um bonito vestido; tive que concordar. A maquiagem também estava suave e discreta. Olhei-me no espelho, e aprovei o resultado.
Em casa Saeko já estava acordada remexendo em sua bolsa.
_Uau! – ela sorriu – Você está linda!
_Obrigada. – sabia que estava corando – Você descansou?
_ Ah sim! – ela disse se espreguiçando – Sua cama é ótima, muito parecida com a minha. Senti-me como se estivesse em minha casa.
_ Que bom!
_ Posso ver o seu vestido? – ela colocou-se de pé a meu lado. Saeko era uma garota vibrante. Ela se relacionava como se já me conhecesse a vida toda! Talvez, para qualquer outra pessoa, esse traço de sua personalidade fosse assustador, mas para mim, era tranquilo. Minha mãe era exatamente assim, então eu já estava acostumada.
Peguei meu vestido no armário e estendi em cima da cama.
_ Lindo! Tem tudo a ver com seu curso. Você ficará parecendo uma pintura antiga. – ela sorriu para mim.
_ Acho que era essa a ideia da minha mãe. – sorri sem graça.
_ Posso te ajudar a se arrumar? – Ela tinha aquele mesmo brilho nos olhos que minha mãe tinha quando ficava empolgada com alguma coisa.
_ Claro! – sorri com a semelhança.
Ela retirou o vestido do cabide enquanto eu me despia e ajudou a me vestir com cuidado. Virei-me e ela fechou o zíper, ajustando a faixa na cintura. Sentei-me na cama para calçar as sandálias, enquanto ela remexia a própria bolsa.
Ela retirou de lá um bracelete dourado, muito bonito.
_ Sabia que tinha trazido! – Ela falou esticando-o para mim.
_ É lindo! – segurei olhando a delicada trama de pequenas folhas que se torciam em fios dourados.
_ Nem sei por que eu coloquei isso na mala... – ela riu dela mesma. – Mas vai combinar maravilhosamente bem com o seu vestido.
_ Saeko... Obrigada! – dei um abraço nela. – Você é um amor!
_ Imagina! – ela sorriu satisfeita.
Algumas batidinhas na porta e uma voz conhecida.
_ Posso entrar? – Flavinha estava com a cabeça curvada para dentro do quarto.
_ Uau!!! Você está lindona!!! – ela continuou, cruzando o quarto segurando minha mão, me obrigando a girar nos calcanhares.
_ Ai Flavinha... Você sabe que eu não gosto disso...
_ Mas você está maravilhosa! – ela me censurou – Isso é um fato!
_ Mas o que você está fazendo aqui há essa hora? – não tínhamos combinado nada. Eu iria sozinha para o salão de formatura e encontraria todos lá depois para irmos ao coquetel.
Flavinha segurou minha mão e nos sentamos na cama. Saeko, pressentindo uma conversa mais íntima, arrumou uma desculpa qualquer para sair do quarto.
_V... – ela começou com um suspiro – Você não imaginou que te deixaríamos sozinha hoje, não é mesmo? – ela estava cautelosa.
Não respondi. Eu sabia do que ela estava falando. Essa data trazia de volta a memória, não de Renato – essa era impossível de ser retirada da minha mente – mas a memória da dor. O dia de hoje seria o final de uma fase e o início de outra. O coquetel – que eu lutei muito para que não acontecesse – seria também nossa festa de noivado. Claro que isso eram apenas planos. Na verdade seria uma surpresa para todos. Renato iria pedir minha mão em casamento, e eu já sabia disso. Apenas nós dois e Flavinha sabíamos.
Continuei perdida em minhas lembranças e Flavinha arrumava uma mecha do meu cabelo.
_ E o Bernardo? – perguntei ainda com a cabeça baixa
_ Ele está aí na sala. – ela sorriu – Foi dele a ideia de trazermos todo mundo para cá.
_ Todo mundo?
_ Sérgio e Marco também estão com a gente.
Deixei meu corpo cair na cama com um suspiro de reprovação.
_ Não, Flavinha...
_ V, não adianta argumentar, amiga. Você não vai sozinha e pronto. – ela estava com aquele jeito autoritário que eu conhecia muito bem.
_ O que vocês disseram para os rapazes, para justificar essa comitiva?– minha voz era baixinha
_ Eles já sabiam, V... – Flavinha escolhia as palavras – Pelo menos sobre o acidente...
Eu joguei o travesseiro no rosto gemendo.
_ V... – Flavinha disse retirando o travesseiro do meu rosto – O pastor Moisés pediu oração por você quando tudo aconteceu. Eles já sabiam quando chegaram à Brasília.
_ Vocês conversaram alguma coisa sobre... sobre isso? – eu estava nervosa com essa ideia. Eu não queria ninguém me observando hoje, mesmo porque, eu tinha certeza que seria uma noite difícil demais para mim.
_ Marco perguntou como você está reagindo. Ele nos contou que os jovens de lá fizeram reuniões de oração por sua recuperação física e emocional.
_ E o que vocês disseram? – minha voz era um sussurro.
_ Bernardo disse que você estava reagindo bem. – a voz dela era baixa e preocupada. Seus olhos procurando no meu rosto algum sinal de “desabamento” – Ele disse que nos últimos meses você tem estado mais forte.
Melhor assim”, pensei. Levantei devagar, Flavinha arrumou o laço em minhas costas e ajeitou meu cabelo.
_ Vamos? – ela me estendeu a mão.
Respirei fundo. Já que não tinha outro jeito, então iria acabar logo com isso tudo. Peguei minha beca – que Flavinha rapidamente tomou da minha mão – segurei a mão dela e caminhamos juntas até a sala.
Flavinha me segurou antes de eu aparecer no alto da escada, me fazendo parar. Ela fez sinal para que eu esperasse. Desceu rápido o lance de escadas e bateu palmas para chamar atenção das pessoas.
_ Pessoal, pessoal! Atenção por favor...
Ai meu Deus!” Pensei em voltar para o meu quarto. Eu não gostava disso e Flavinha sabia muito bem! Tive vontade de não descer e deixá-la com cara de boba lá embaixo.
_ Com vocês, a nossa artista plástica favorita... Virgínia Morello!
Respirei fundo e fiz uma anotação mental de que, assim que eu pudesse, faria Flavinha me pagar muito, muito caro por isso.
Desci as escadas devagar sem olhar para ninguém. Ouvi os aplausos e os elogios.
Minha mãe foi a primeira a me abraçar cheia de aprovação. Meu pai estava logo atrás com um sorriso largo no rosto. Bernardo me abraçou com carinho e depois, um a um dos membros da comissão vieram me beijar. As meninas ainda não estavam prontas. Elas iriam mais tarde com meus pais. Os rapazes estavam muito elegantes, mas Sérgio mantinha aquele ar incômodo e distante que eu vira mais cedo.
_ Então, vamos? – falei sem graça.
_ Eu vou com a V, Ber. – Flavinha segurava minha beca enquanto pegava sua bolsa no sofá.
_ Claro. Nós seguiremos vocês.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Capítulo 05 - Graça

Capítulo 05

Graça

Estávamos a caminho da casa de Bernardo. Na última semana íamos até lá todos os dias quando voltávamos da faculdade. Rafael estava se recuperando muito bem e seu rosto já estava quase livre dos hematomas. Ele teria que ficar com o gesso por mais vinte dias, e as faixas nas costelas por mais tempo.
         Rafael estava ambientado na casa de Bernardo, embora cada ação de Dona Maria Elisa, ou de qualquer outro membro da família de Bernardo em seu favor o deixasse muito constrangido. Ele já estava andando, com um pouco de dificuldade em virtude das dores que ainda sentia nas costelas, mas já se movimentava por todo o apartamento.
             Seus pais tiveram sucesso com a busca pela casa. Conseguiram uma casa muito maior que a anterior por um bom preço, mas que precisava de alguns reparos. Os jovens da igreja estavam trabalhando em mutirão para concluírem logo a reforma. Por causa disso, seus pais, além de extremamente agradecidos, estavam muito animados e esperançosos por um recomeço mais tranquilo para toda a família. A casa era próxima a escola das crianças menores. Para Rafael não mudaria muita coisa, já que sua escola ficava no centro de Brasília. A diferença era que ele poderia usar o metrô para ir e vir da escola.
           Chegamos na hora do lanche da tarde. Dona Maria Elisa estava nos esperando. Flavinha agora era presença obrigatória. Bernardo e ela estavam muito próximos. Embora nenhum dos dois tivesse se declarado ainda, cada dia ficava mais evidente os sentimentos mútuos.
            A conversa estava animada. Bernardo estava nos contando sobre o progresso na nova casa. Flavinha fazia perguntas completamente atenta a tudo que Bernardo dizia. Ela “bebia” cada palavra com entusiasmo. Eu permanecia quieta, prestando atenção. Percebi que Rafael estava muito calado remexendo com uma colher o leite com Nescau em sua caneca.
_ Algum problema, Rafa? – perguntei baixinho. Ele levantou a cabeça surpreso com a interrupção em seus pensamentos.
_ Nada, V. – falou de forma evasiva. Seu rosto era de tristeza.
_ Como “nada”, Rafa? – continuei no mesmo tom – Você já não me engana. – completei com um sorriso.
Rafael deu um suspiro alto e Bernardo virou para olhá-lo, então ele falou.
_ Sabe o que é? Eu não entendo o que vocês estão fazendo por nós. Vocês nem conheciam a gente antes, e estão fazendo tudo isso por minha família! – seus olhos eram sinceros enquanto sua mão boa fazia gestos no ar enquanto falava. – Eu me sinto sem graça de receber tanta coisa e não ter nada para dar em troca. – sua voz baixou o tom e ele parecia emocionado – Minha família nunca vai conseguir pagar nada do que vocês estão fazendo por nós.
O silêncio tomou conta da cozinha. Ninguém esperava por essa reação de Rafael. Dona Maria Elisa, que estava de pé mexendo nos armários, sentou-se conosco. Ela fez menção de falar alguma coisa, mas Bernardo segurou sua mão fazendo-a se calar. Ele olhou para Rafael com um olhar intenso.
_ Então agora você está pronto pra entender sobre a graça redentora de Jesus. – o silêncio que se seguiu na cozinha era o ambiente certo para a maior e melhor de todas as conversas que Rafael já participou.
_ Rafa, lembra da história que te contei sobre Jesus? – Bernardo continuou com paciência. Rafael assentiu. – Então... Jesus deu sua vida por amor, sem que nós realmente merecêssemos. Nós éramos pecadores e, como pecadores, inimigos de Deus. Lembra que te expliquei sobre o pecado que nos separa do amor de Deus? – Rafael continuava calado, mas sua expressão agora era de vívido interesse – Pois é isso! Deus é completamente Santo e não pode andar junto com o pecado. Quando pecamos, ficamos separados de Deus. Mas Deus quis reparar essa distância mandando Jesus para nos salvar. – Rafael cruzou o braço bom por cima do gesso e se aproximou mais da mesa. Sua postura era de quem estava interessado e queria ouvir mais – Jesus não foi morto pelos soldados romanos por não conseguir escapar deles. Ele foi morto porque quis nos resgatar. Estava nos planos dEle desde o início da criação. Nós jamais mereceríamos isso, mas ainda assim Ele fez por amor. – Bernardo enfatizava as palavras – Agora, imagine comigo, alguém Justo, completamente Santo, sem nenhum pecado, morrendo no lugar de um injusto, pecador, para que essa pessoa pudesse ter uma nova vida, livre do pecado e ficasse novamente perto de Deus. – os olhos de Rafael estavam brilhando – Consegue imaginar? Só um amor tão grande consegue explicar isso. E se você é um injusto, um pecador que não tem nada para dar para um Jesus Perfeito e Santo, o que você pode fazer? – Rafael balançou a cabeça curvando os lábios sem ter uma resposta – Nada! – Bernardo continuou – Absolutamente nada! Como você pode pagar uma coisa que não tem preço? A vida de Jesus é um sacrifício muito caro. Nada que a gente faça vai conseguir pagar esse preço. Nada mesmo! Sacrifícios, promessas... qualquer coisa! Nada conseguirá pagar o preço de tão grande salvação. – Bernardo parecia brilhar! As verdades bíblicas fluíam com facilidade. Estávamos todos muito quietos ouvindo. Bernardo continuou.
_ A comparação entre o que você sente com relação a nossa família nem cabe aqui, porque o que Jesus fez por nós é muito maior, mas agora você percebe o que significa o fato da salvação ser de graça? Não é de graça porque não vale nada, mas é de graça porque não temos como pagar, nem se quiséssemos conseguiríamos. – Bernardo suspirou. Rafael estava de cabeça baixa. Quando levantou estava com os olhos cheios de lágrimas.
_ Eu entendo! – ele sussurrou. – Agora eu entendo! – suas lágrimas caíram livremente, sem nenhum constrangimento. – Eu não merecia nada disso! Eu quero isso para mim! Preciso de Jesus em mim! – Bernardo ficou de pé abraçando Rafael e nós nos juntamos a esse abraço, muito emocionados.
Rafael orou confessando seus pecados e entregando sua vida para Jesus salvar. Ele estava radiante! Feliz por finalmente entender a salvação em Cristo que Bernardo sempre tentara lhe explicar, mas que ele não conseguia aceitar nem entender. O fato de não precisar dar nada em troca nunca fizera sentido para ele até aquele momento. Estávamos muito felizes!

A casa da família de Rafael estava finalmente pronta. Todos estavam lá para ajudar na mudança. Rafael permanecia sentado, muito a contragosto, à sombra de uma mangueira, nos fundos do quintal. Queria ajudar, mas seu braço ainda estava no gesso – que agora estava todo riscado com a assinatura dos jovens da igreja – e seu peito ainda estava enfaixado.
              Levamos todos os móveis para dentro e íamos colocando onde a mãe de Rafael nos indicava. A casa era bem confortável e ventilada, diferente da antiga. Até a atmosfera do lugar era diferente. Havia uma esperança no ar que era quase tangível. A família estava muito feliz com essa mudança porque não era apenas uma mudança física, mas uma possibilidade de recomeço.
             Mesmo com a recuperação de Rafael, a vizinhança antiga continuava a olhá-lo com desconfiança, além disso, os membros de sua antiga gangue estavam sempre por perto oferecendo drogas ou testando sua paciência. Eram constantes as provocações e os limites de Rafael estavam perigosamente sendo testados.
          Agora a família tinha a chance de recomeçar uma vida nova. Havia uma igreja da mesma denominação que os pais de Rafael frequentavam há algumas quadras da nova casa. O comércio também era mais bem estruturado e a casa ficava próxima a estação do metrô.
            Passamos toda a manhã nos ocupando com a mudança e a arrumação da nova casa. A mãe de Rafael havia preparado uma galinhada muito saborosa para o almoço. Comemos sentados à sombra da mangueira. As risadas e as conversas rolavam soltas. Dudu, como sempre, contava suas histórias que faziam todos rirem. Bernardo e Flavinha estavam sentados juntos, conversando baixinho. Eu sentei-me sozinha olhando tudo aquilo.
             Estava muito feliz com meus amigos, meus projetos, com Rafael, com o final do meu curso – que seria em duas semanas – com minha vida voltando ao normal...
Naquele momento senti uma falta absurda de Renato. Estava feliz, mas não completa. Com minha formatura se aproximando era difícil não pensar nele. Tínhamos planos...
No fundo, eu estava com medo dessa data. Tinha medo de a ferida reabrir, e eu ter que passar por todo o processo de cura de novo. E pior! Tinha medo de, dessa vez, não conseguir mais. Estava remexendo a comida do meu prato sem perceber que já estava chorando.
_V? – Flavinha havia se aproximado sem que eu percebesse – Você está chorando, amiga?
_ Não se preocupe, Flavinha. – falei limpando meus olhos e colocando os óculos escuros. Tinha certeza que meu nariz estava vermelho. – É só o de sempre, mas eu estou bem. – sorri para ela. Ela me abraçou com carinho.
_ Conta sempre comigo, tá? Sempre. – ela sussurrou no meu ouvido.
_ Eu sei, amiga. Eu sempre sei que posso contar com você! – falei sinceramente agradecida. – Com você e agora acho que... com mais alguém... – falei sorrindo. Ela sorriu de volta e me olhou nos olhos com o rosto corado por baixo das sardas. Seus olhos verdes cintilaram de alegria.
_ Ai, V! – ela falou apertando minhas mãos – Acho que ele também gosta de mim.
_ Que bom amiga! – “Droga de segredo”, pensei. – Espero que dê tudo certo para vocês. Eu amo muito os dois.
Ela me abraçou de novo, mas dessa vez era um abraço muito animado, cheio de expectativas.
Como eu queria contar para ela e acabar com tudo aquilo! Mas como estava tudo caminhando bem, como deveria ser, decidi que a melhor coisa a fazer era manter minha promessa feita aos dois. Se depois – quando eles finalmente descobrissem que eu sabia de tudo o tempo todo – eles quisessem me matar... Sorri ainda abraçada a Flavinha.
Terminamos o dia com uma roda de louvor à sombra da mangueira. Cantamos, oramos e agradecemos a Deus por esse novo recomeço da família de Rafael. Alguns vizinhos vieram se juntar a nós e se apresentavam com simpatia e hospitalidade.
Os irmãos de Rafael já estavam enturmados com as outras crianças da rua. Criança sempre faz isso com mais facilidade que nós, adultos. Elas são muito mais simples e descomplicadas. Corriam pela rua e exploravam as novidades.
Rafael estava muito feliz e podíamos ver isso claramente. Ele sorria e nos abraçava o tempo todo. Estava agitado e precisávamos lembrá-lo, constantemente, de que ele precisava se comportar, por causa das costelas que ainda necessitavam de repouso. Sua felicidade era contagiante!
Saímos de lá felizes. Todos nós.
A graça, que havia alcançado a vida de Rafael e que também havia alcançado cada um de nós, nos enchia o coração. Sabíamos que não poderíamos fazer nada para pagar esse imenso amor que Jesus demonstrou por nós. Tudo o que fizéssemos tentando, sequer chegaria perto.
Todo o trabalho que fazíamos, toda a dedicação ao próximo não era com intuito de acumularmos boas obras. Era tão somente gratidão e obediência a esse Deus que nos havia resgatado.
Há muito tempo havíamos compreendido que a graça de Deus era suficiente. E era isso que mantinha minha sanidade quando pensava em Renato.
A minha graça te basta”.

terça-feira, 19 de abril de 2011

Capítulo 04

Flavinha e Bernardo

_Legal, Rafa! Parabéns! Você tá aprendendo direitinho. – sorri enquanto esfregava a cabeça de Rafael.           Ele estava realmente aprendendo a tocar, mesmo com as limitações de não ter um violão durante a semana para treinar. Como não tínhamos a permissão de darmos um violão para ele ainda, ele treinava as posições usando o próprio braço esquerdo como se fosse o braço do violão. Imaginava as cordas e fazia as posições. Era extremamente esforçado, e havia evoluído bastante nos últimos meses.
         Nem sempre eu podia ir com Bernardo, mas mandava meu violão com ele. Quando ia, me limitava a observá-los e ajudar em uma ou outra coisa.
A recuperação de Rafael também estava indo muito bem. Ele já havia retornado para sua casa e estava estudando novamente em outra escola, para ficar longe das “más influências”. Já não usava drogas há algum tempo.
Bernardo estava investindo muito nessa recuperação. Foi ele quem ajudou os pais de Rafael com a transferência da antiga escola e a comprar os materiais escolares. Rafael estava bastante atrasado nos estudos, mas Bernardo conseguiu uma escola de aceleração, e Rafael estava muito empenhado. Ele parecia estar mesmo agarrando essa oportunidade com força e determinação.
Ele só era reticente quanto a ir à igreja. Bernardo nunca vinculou sua ajuda a nada. Rafael estava livre para ir à igreja quando quisesse. Bernardo estava sempre falando de Jesus para ele, e orando por sua restauração completa. Mas Rafael ainda tinha algumas dúvidas quanto à questão de salvação. Ele não conseguia entender porque Jesus precisou morrer por pecadores que sequer conhecia, e também não aceitava o fato de que a salvação era de graça. Para ele seria necessário fazer alguma coisa para merecê-la e como ainda se sentia em débito com Deus por tudo que já havia feito, dizia que só entregaria sua vida para Ele quando estivesse com tudo em dia.
Nós orávamos por ele para que Deus o convencesse de que nada era necessário para ser salvo, bastando apenas crer e confessar Jesus como salvador. Mas Rafael continuava irredutível.
As aulas agora aconteciam na casa dele. Seus pais olhavam para Bernardo com profunda admiração. Eles eram gratos por tudo que estavam fazendo por seu filho mais velho. Eles entenderam rapidamente a mensagem de salvação em Cristo e quiseram essa vida para eles. Oraram entregando suas vidas para Jesus com muita alegria e gratidão a Deus.
_ Legal, Rafa! – Bernardo falou empolgado. – Acho que por hoje já tá bom. Semana que vem eu volto para treinarmos um pouco mais de “pestana”, beleza?
_ Falou, Ber! – ele bateu o punho na mão de Bernardo. Estávamos indo embora quando dei meia volta e instintivamente estendi meu violão para Rafael.
_ Pode ficar com ele essa semana. Eu pego no sábado que vem. – ele olhou com a boca aberta para o violão que eu estendia em sua direção. Hesitou um pouco antes de pegá-lo.
_ Obrigado, V. Eu prometo que vou cuidar muito bem dele. – Falou ainda olhando para o violão, e com um sorriso enorme nos lábios.
_ Cuida mesmo, hein! Eu confio em você. – falei sorrindo de volta e esfregando seu cabelo.
Saímos juntos da casa de Rafael. Bernardo não era muito de falar, mas quando se sentia seguro, falava pelos cotovelos. Eu era uma das pessoas com quem Bernardo conseguia falar tranquilamente. Nossas conversas fluíam.
_ V, eu tô super animado com o Rafael! Ele nasceu para a música! – ele batia a mão no volante enquanto falava das proezas de seu aluno
_ É mesmo. – concordei com a minha mente longe dali – Bernardo. – comecei – Eu estava pensando...
_ Sim? – ele falou entusiasmado.
_ Acho que poderíamos te ajudar com essa questão do patrocínio.
_ Como?
_ Estava pensando em procurar o chefe do papai e apresentar o projeto a ele. Também poderíamos fazer o mesmo com os outros jovens. Se cada um de nós conseguisse um violão, seriam mais de trinta violões! – falei animada – Acho que, se decidirmos unir forças, poderemos ter melhores resultados.
_ Legal, V! Vale à pena tentar. – ele disse pensativo, mas sem muito ânimo. Bernardo já havia tentado muitas coisas para conseguir patrocínio e agora era mais reticente quanto a soluções “mágicas”
_ Vamos falar hoje à noite com os jovens, se todo mundo topar...
Parecia que um brilhozinho muito suave de esperança brotava em seus olhos. Fomos conversando sobre o projeto durante o caminho.
Ele continuava com as crianças da periferia de manhã, e à tarde ia para casa de Rafael, que era o único aluno com aulas particulares.
Só um assunto eu não conseguia tocar de jeito nenhum com Bernardo: Flavinha. Como eu poderia dirigir nossa conversa de forma a descobrir alguma coisa? Bernardo era muito reservado e, se sentisse algo por Flavinha, eu seria a última pessoa no mundo a quem ele confessaria alguma coisa.
Ele continuava falando sobre o projeto enquanto eu desviava meus pensamentos em direção a Flavinha.
_ V? Tudo bem? – ele disse com o tom de voz preocupado. Acho que meus amigos nunca estariam completamente livres do “fantasma” que eu mesma havia criado quando “saí do ar” por tanto tempo.
_ Tudo. Eu só me distraí. – falei sem graça por não estar prestando atenção ao que ele dizia.
_ Legal te ver bem de novo, V! – ele sorriu para mim.
_ Obrigada.
_ Sentimos muito a sua falta. – falou carinhosamente.
_ Eu também Ber, embora não estivesse realmente consciente disso.
_ Foi difícil para você, né? Perder alguém que se ama não deve ser muito fácil mesmo.
Meu coração deu aquele salto de alerta. Pensar ou falar em Renato ainda era um assunto delicado para mim.
_ Não é mesmo! – falei abaixando os olhos
_ Eu sinto muito, V.
De repente vi nesse assunto a brecha que eu estava procurando.
– E você, Ber? – olhei para o outro lado – Nunca amou ninguém? – disparei a queima roupa.
Ele não respondeu, mas seu rosto assumiu um tom vermelho vivo. Estava tão constrangido que eu olhei para fora tentando dar um espaço para ele se recompor. O silêncio continuava agora constrangendo nós dois. Eu me sentia como se tivesse falado um palavrão. Não sei quem estaria mais vermelho agora.
_ Olha, desculpe, Ber. Eu não queria te constranger. – falei ainda olhando para fora – Foi só que estávamos conversando e... bom, desculpa, por favor.
_ Tudo bem, V. – ele falou baixinho. Não me virei para olhá-lo de novo. Continuei olhando a paisagem enquanto ele dirigia a caminho da minha casa.
Continuávamos em silêncio e eu estava com medo de olhar na direção dele. De repente, o carro foi perdendo velocidade, e ele parou no acostamento. Estávamos próximos ao Memorial JK. Eu olhei para ele, confusa.
_ Por que paramos?
Ele desligou o carro e baixou os olhos, cruzando as mãos sobre as pernas e sacudindo o joelho para cima e para baixo. Estava visivelmente nervoso. Seu rosto agora estava lívido, feito cal, e ele parecia suar. Permaneceu em silêncio, parecendo decidir alguma coisa. Fiquei esperando, mas isso estava me deixando nervosa, então quebrei o silêncio.
_ Ber... eu não queria...
_ É o seguinte, V. Se vamos ter essa conversa você terá que me prometer que não vai comentar isso com ninguém durante toda a sua vida.
Meu Deus! O que seria tão terrível assim para iniciar com um discurso passional feito esse?
_ Bernardo, você não precisa me dizer nada que não queira. – eu já estava ficando nervosa demais com aquela situação.
_ Esse é o problema, V. Eu quero dizer, mas preciso estar... seguro de que você não fará, absolutamente – e ele frisou bem essa última palavra – nenhum comentário com ninguém. Promete?
Por que eu estava com a sensação de que já tinha tido essa conversa antes?
_ Ok, Ber, prometo. – disse solenemente.
_ Tá bom... – ele suspirou nervosíssimo. Agora esfregava as mãos e seu joelho parecia ter vida própria. Aquilo já estava me deixando angustiada. Ele voltou a ficar em silêncio, e eu já estava pronta para gritar que não queria ouvir mais nada quando ele falou.
_ É claro que já gostei de alguém.
Era isso? Todo esse estresse para isso?
_ Na verdade eu ainda gosto dela. – ele continuou depois de um longo silêncio. Decidi não interrompê-lo e esperar com paciência que ele fizesse isso no próprio ritmo. Isso me fez lembrar a luta de Flavinha para me contar seu mais valioso segredo, com o rosto escondido no travesseiro. Será que se o quarto estivesse iluminado eu teria visto a mesma demonstração de nervosismo? Sorri na minha mente pela semelhança daqueles dois.
_ Ela foi a primeira pessoa que eu vi quando cheguei à igreja. Fiquei impressionado não só com a beleza dela, mas com o “conjunto da obra”, sabe? – ele falou com um sorrisinho tímido.
           _ Desde que chegou à igreja? Se você gosta dela há tanto tempo assim, por que ainda não a procurou para conversar?
          Eu estava sinceramente curiosa. Eu havia prometido que não falaria nada com ninguém sobre nossa conversa, mas se eu soubesse que ele estava interessado em outra garota, com certeza acharia um jeito de dissuadir a Flavinha sem precisar revelar o seu segredo. Não a deixaria ficar alimentando esperanças em vão. Então continuei.
          _ Ber, você sabe que pode confiar em mim. Somos amigos há quanto tempo? Mas eu vou entender se você não quiser compartilhar uma coisa tão íntima comigo.
           _ Não V. Eu tô... tô legal. – ele gaguejou – Agora que já comecei quero ir até o fim.
Ele suspirou fundo, e disparou as palavras em minha direção.
           _ No início até achei que poderia tentar. Mas eu percebi que ela não me dava a menor atenção, então decidi que não iria pensar mais nela. Só que ela não saía da minha cabeça. Para piorar, eu a via todo final de semana!
            Fiquei quieta com medo de que minha respiração pudesse assustá-lo e ele desistisse de continuar sua narrativa tão sincera.
            _ Mas foi na última viagem de socorro que fizemos para Minas Gerais que eu pensei que teria alguma chance...
             Minas Gerais? Minas Gerais reduziam as meninas da igreja a apenas quatro: Flavinha, Luiza, Ritinha e Celinha, mas Luíza não contava porque era namorada de Dudu. Tentei imaginar qual delas fazia o tipo de Bernardo. Na minha cabeça eu torcia para que fosse Flavinha.
         _ Lá em Minas, eu até imaginei ter visto alguma coisa, até pensei em falar com ela quando voltássemos, mas quando retornamos a Brasília ela permanecia indiferente e distante como sempre... Apenas amigos. Confesso que fiquei frustrado.
Será que...? Não custava tentar.
             _ Ber? Você tá falando da Flavinha? – arrisquei
          Ele parecia um tomate com hemorragia! Continuava encarando os próprios pés. Seu silêncio durou mais tempo que a minha paciência, mas ainda assim eu resolvi esperar. Ele estava analisando o peso dessa informação, medindo se valeria mesmo a pena se expor dessa maneira. Fez um leve movimento assentindo com a cabeça e eu quase soltei um grito. Bernardo estava apaixonado pela Flavinha!

Deitada no meu quarto, eu agora processava minhas novas informações. Flavinha estava apaixonada por Bernardo, mas me fez prometer que guardaria seu segredo. Bernardo estava apaixonado por Flavinha, mas me fez prometer a mesma coisa estúpida. E agora?
            Durante o culto eu ficava olhando de um para outro sem acreditar naquela situação absurda. Pensei em chamá-los para comermos uma pizza, mas ambos ficariam zangados comigo, imaginando que eu estaria dando uma de “cupido”. Pensei em colocá-los frente a frente e simplesmente dizer: “Falem” e sair de perto, mas não era um plano muito bom. Carta anônima? Igualmente ruim.
Até quando seria confidente dos meus amigos sem deixar escapar o segredo um do outro?
Os jovens ficaram empolgados com o apoio ao projeto de Bernardo. Ele mandaria uma cópia do seu projeto para cada um de nós e iríamos procurar nossos contatos. Seria um bom desafio para todos. Isso me deixava feliz, mas não diminuía a pressão de ser guardiã de um segredo, ou melhor, de dois segredos.
Tirei o travesseiro debaixo da minha cabeça e o coloquei no rosto apertando forte. Por que eu fui prometer? Seria tão mais fácil pegar o telefone e contar a minha conversa dessa tarde com Bernardo para Flavinha. Ela ficaria radiante! Ou ter contado para Bernardo minha conversa de outra noite com Flavinha. Ele teria ficado radiante!
           E quando eles souberem que eu já sabia, mas não contei? Que eu poderia ter diminuído a aflição deles, mas não o fiz? – Argh! – dessa vez eu mordi meu travesseiro e joguei-o na parede. Era uma situação nova e angustiante para mim.
Continuei deitada, meus olhos pousaram no lugar de costume, o quadro que eu só conseguia vislumbrar pela tênue luz da lua que entrava pela janela. Fiquei pensando em Renato, e em como ele resolvia as coisas com facilidade. Para ele nada era complicado demais, “complicado era o olho de quem via” – ele costumava dizer.
Suspirei de saudade. Como ele me fazia falta! Não era apenas falta da presença física dele – isso, sem dúvida, me consumia – mas era alguma coisa ainda mais forte. Era saber que eu não o veria nunca mais, pelo menos não aqui nessa vida. Sentia falta da voz dele, das conversas, do sorriso, dos conselhos, das piadas, do jeito simples e descomplicado com que ele lidava com a vida... Sem perceber já estava chorando. De novo.
             Acordei ainda com aquele “gosto” ruim do meu sonho. Esperava que um dia esse sonho acabasse, ou pelo menos mudasse.
              Flavinha passaria aqui em casa cedo, então decidi me arrumar logo para evitar atrasos. Quando ela chegou ainda estava tomando café, e ela sentou-se ao meu lado pegando um pão de queijo.
            _ E então? – Flavinha estava animada – O e-mail do Bernardo chegou ontem à noite. Já falei com meu pai e ele achou que os próprios colegas de trabalho dele farão uma vaquinha para contribuir. Acho que vai dar certo, V.
              Meu celular tocou.
          _ Bernardo! – falei mostrando a foto dele que piscava no visor do meu celular – Essa hora? – estranhei.
         _ Oi, Ber. Tudo bem? – perguntei confusa. À medida que Bernardo falava minha expressão ficava aterrorizada. Flavinha já estava de pé ao meu lado, e pelo rosto dela eu pude ver o reflexo de pavor que o meu próprio rosto assumia. – Eu tô indo para aí agora. – desliguei o celular olhando para a Flavinha boquiaberta.
             _ Fala, V. O que aconteceu?
           _ É o Rafael. – falei pasmada – Ele está no hospital. Parece que ele foi pego pela antiga gangue dele...
Flavinha levou as duas mãos à boca completamente atônita.
                _ Ele está... – ela sussurrou apavorada.
             _ Ele está internado, muito machucado. – falei rápido enquanto pegava a minha bolsa. Revirei o armário procurando a chave do meu carro, mas lembrei que tinha deixado o carro ontem à tarde no mecânico, por esse motivo a Flavinha estava aqui para me buscar. – O Bernardo está lá esperando o Dr. Henrique, que está indo também para ver no que pode ajudar. Vamos?
               Flavinha já estava de pé na porta me esperando. Saímos rápido em direção ao hospital. No caminho liguei para os meus pais para avisá-los. Liguei também para algumas pessoas para que ficassem em oração. Não sabíamos como Rafael estava. Eu sabia que a gangue não estava satisfeita com a mudança de vida dele e sempre que podiam o ameaçavam, por isso Bernardo havia ajudado a mudá-lo de escola. Meu coração estava disparado, e o medo de que algo grave pudesse ter acontecido com Rafael me fazia tremer.
               Ataques de gangues já estavam se tornando comuns em Brasília, como em qualquer outra capital. Grupos de jovens e adolescentes sem expectativas de vida se reuniam para consumir drogas e cometerem pequenos furtos. Quando algum participante do grupo resolvia “pular fora” a decisão nunca era bem vista, e geralmente a reação era violenta.
              Chegamos rápido ao hospital e Bernardo estava na recepção com o pai de Rafael. Ele disparou para nós quando nos viu:
              _ Ber. – falei dando um abraço nele – O que aconteceu?
                Ele abraçou Flavinha também enquanto contava os detalhes.
               _ Ele estava na frente de casa treinando com o violão – ele falava agitado – então um dos rapazes da gangue passou e fez alguma piada para provocá-lo. – o pai de Rafael já havia se juntado a nós. – ele não queria briga, então fingiu que não ouviu. O rapaz foi embora, mas voltou com os outros caras da gangue, uns oito pelo menos, e continuaram a provocação. Quando Rafael tentou entrar em casa, um deles tomou o violão. Ele tentou pegar de volta e a briga começou. – Bernardo suspirou – A mãe dele está lá dentro com ele.
            _ Rafael não queria brigar, Virgínia, mas os moleques pegaram o violão e ele disse que não iria deixar. Ele não é mais de briga. – O pai dele falava com uma pontada de orgulho pela atitude do próprio filho.
              _ Mas como ele está? – perguntei aflita
             _ Ele está bem... – Bernardo parecia mais tranquilo – Quebrou o braço direito e duas costelas. Está bem machucado, mas o Dr. Henrique disse que não é muito grave.
         _ E você? Como você está? – a pergunta foi de Flavinha e percebi que Bernardo não estava esperando por isso. Ele olhou direto nos olhos dela e ficou um tempo em silêncio. Talvez até àquela hora ninguém tivesse se preocupado com ele ainda, afinal Bernardo gostava muito de Rafael. Ele acreditava mesmo na recuperação do garoto, e estava muito envolvido nisso. Ele sorriu suavemente, sua voz acompanhou o mesmo tom e estava carregada de emoção e gratidão.
            _ Estou bem. Fiquei muito preocupado por não saber exatamente como ele estava...
       _ Mas vai ficar tudo bem, Ber... – Flavinha colocou a mão em seu ombro e estava igualmente emocionada – Nós vamos ajudar no que for preciso.
           Eles estavam se olhando de um jeito tão intenso que me senti constrangida por estar ali. Aproveitei que o pai de Rafael havia se afastado e saí com a desculpa de procurar o Dr. Henrique. Deixei os dois sozinhos, mas me virei a tempo de ver Bernardo segurando o braço de Flavinha e conduzindo-a ao banco da recepção.
          Fiquei longe dos dois o tempo que pude. Queria muito que eles percebessem alguma coisa um do outro. O Dr. Henrique estava no hospital, mas ninguém conseguia localizá-lo. Não queria ligar no celular com medo de estar atrapalhando algum procedimento. Minha pressa era só para ter mais notícias de Rafael, embora não pudesse negar que estava muito feliz pela demora, porque isso significava mais tempo entre Flavinha e Bernardo.
           A situação de Rafael era estável, o que mais preocupava eram as costelas quebradas, porque havia risco de perfurar algum órgão, mas graças a Deus isso não havia acontecido. Essas informações Bernardo já havia nos passado assim que chegamos, então só estávamos ansiosos para vê-lo.
             Finalmente o Dr. Henrique apareceu nas portas duplas da sala de espera. Estava sorrindo, o que nos deixou mais tranquilos. Fez sinal para que nós o acompanhássemos. Olhei para Bernardo e Flavinha e eles já estavam de pé, vindo na minha direção. O pai de Rafael estava ao lado do Dr. Henrique.
             Andamos com ele enquanto nos explicava a situação de Rafael. Ele teria que permanecer no hospital em observação pelo menos mais um dia.
          Entramos por corredores apinhados de gente. Dr. Henrique conseguiu agilizar o atendimento de Rafael, conduzindo-o por todo o hospital, indo da radiografia à sala de gesso e conseguindo um leito para ele. Seus pais estavam muito agradecidos por isso.
           Chegamos à enfermaria onde enxergamos Rafael no primeiro leito. Ele estava com o rosto muito machucado. Tinha um olho roxo e inchado, e um corte profundo no lábio inferior igualmente inchado. Havia um hematoma enorme em sua bochecha esquerda, e vários arranhões pelo rosto, braço e peito, pelo menos na parte em que não estava enfaixada. Ele estava com o braço preso a um tubo de soro. A mãe dele estava sentada ao seu lado e quando nos viu entrar, veio em nossa direção, rasgando agradecimentos e elogios a Dr. Henrique e a Bernardo. Os dois agradeciam as palavras de carinho, mas deixavam claro que eles não mereciam aquilo, pois Deus é quem havia providenciado livramento e ajuda ao Rafael.
           Dr. Henrique usava do seu trabalho para mostrar o amor de Deus para as pessoas. Ele era um médico atencioso e muito dedicado. Conseguia ajudar seus pacientes não apenas com conforto físico, mas também conforto espiritual.
           Rafael tentava sorrir para nós. Fiquei ao seu lado, e segurei a mão sem gesso, com cuidado.
           _ Que susto hein, Rafa?! – sorri para ele
           _ É. – ele falou com dificuldade – V, seu violão... – ele tentou se justificar
            _ Esquece isso! – interrompi – O importante é que você está bem.
            _ Mas os caras quebraram ele. – ele dizia com dor na voz.
          _ Rafa... – eu acariciei seus cabelos enquanto falava devagar – É sério, não tem problema. Não foi culpa sua.
             _ A gente vai pagar viu, Virgínia? – a mãe dele interrompeu
             Os pais de Rafael estavam de pé logo atrás de Bernardo, que se mantinha próximo a Flavinha.
        _ Por favor! – eu supliquei – Não vamos falar disso. Eu não quero saber de violão nenhum. O importante é que tudo acabou bem. – me virei para Rafael – E você, mocinho, só precisa melhorar esse braço para voltar a tocar. É sério mesmo, eu não preciso desse violão, tá bom? E não vamos mais falar disso.
        Continuamos na enfermaria. Bernardo havia saído com os pais de Rafael enquanto Flavinha e eu conversávamos com ele. Rafael parecia bem mais disposto com a nossa visita e até tentou cantar algumas músicas para me perguntar sobre umas posições que ele estava em dúvida. Ele não demonstrava o menor traço de raiva quanto aos outros meninos da gangue. Em nenhum momento da conversa ele mencionou a gangue. Seu pai também havia reparado nisso. Estava satisfeito com a mudança do filho que, embora provocado, não reagira e nem estava planejando vingança. Rafael estava visivelmente mudado.
Quando Bernardo retornou, ele tinha novidades.
         _ Então, Rafa, estive conversando com seus pais e achamos que a sua casa não é mais segura para você e sua família. Enquanto não encontrarmos uma nova casa para vocês, você ficará na minha casa.
Rafael olhou surpreso para seus pais. Eles pareciam tristes pela separação, mas havia um brilho de gratidão e esperança nos olhos de ambos.
           _ Filho... – a mãe de Rafael dizia, enquanto caminhava na direção dele – Esses moleques só vão parar quando te matarem. Aquele lugar só trouxe coisa ruim para gente. – ela falava enquanto afagava seus cabelos  – Vamos começar noutro lugar. O Bernardo vai ajudar a gente a encontrar uma casinha boa.
           _ Não vai demorar muito não, filho. – seu pai falou – Bernardo disse que já sabe de um lugar muito bom para gente. Nós vamos passar lá agora e acho que em duas semanas, no máximo, já estaremos na casa nova – o pai parecia realmente confiante. Apenas Rafael não parecia gostar muito da ideia.
             _ É que eu não quero incomodar ninguém – ele disse timidamente.
            _ Mas não é incomodo nenhum. – Bernardo se antecipou – Meus pais e meu irmão já estão sabendo e foram eles que ofereceram a nossa casa para você ficar o tempo que precisar, e seus pais e seus irmãos poderão visitá-lo sempre que quiserem.
           Bernardo tinha uma família com o coração tão grande quanto o seu. Seus pais sempre ajudavam no que fosse preciso e seu irmão, Enrico, era um rapazinho adorável.
          _ Combinado, então? – Bernardo continuou – Amanhã, assim que você receber alta, nós iremos para a minha casa. Agora eu vou sair com seu pai para procurar uma nova casa para sua família.
       _ Acho que podemos ir agora, né? – Dr. Henrique falou da porta da enfermaria – Rafael precisa descansar um pouco.
            Despedimo-nos e deixamos Rafael com a mãe na enfermaria.
          Fomos com Bernardo procurar uma nova casa para a família de Rafael. Como era domingo, não havia imobiliárias abertas, mas Bernardo conhecia um corretor e deixamos o nosso contato com ele. Também fomos dar uma volta em algumas cidades e anotamos alguns números de telefone das casas que o pai de Rafael achou interessante.
Bernardo era incansável! Completamente determinado e envolvido com sua nova missão. O que estava diferente agora era seu comportamento com relação a Flavinha.
Ele estava sempre esperando por ela, se postando ao seu lado, esperando que ela passasse para continuar a caminhar... Era como se estivesse sempre consciente de sua presença. Flavinha estava visivelmente satisfeita com essa mudança. Ela sorria sempre que ele lhe dirigia o olhar. Eu a vi retirar um fio de cabelo de sua camisa enquanto ele falava com o pai de Rafael. Ele virou o rosto e sorriu agradecendo aquele simples gesto. As coisas pareciam estar indo bem.
            Flavinha e Bernardo finalmente haviam se encontrado.