sexta-feira, 24 de junho de 2011

Capítulo 06 - Comissão

Capítulo 06

Comissão

Pronto! Finalmente meu quarto estava arrumado. Queria deixar tudo organizado, antes de dormir para nossas hóspedes que chegariam pela manhã. Um grupo de cinco jovens, três moças e dois rapazes, estava vindo para Brasília para divulgar o próximo Congresso Nacional de Jovens que aconteceria em São Paulo.
Eles iriam a cada uma das regiões onde nossa denominação tinha igrejas. Já haviam passado pelo Sul e agora vinham para o Centro-Oeste, de onde seguiriam para o Nordeste. Estávamos no mês de outubro e o Congresso seria em fevereiro do próximo ano. Teríamos pouco mais de três meses para nos organizar.
          Eu me ofereci para hospedar as moças. Minha casa era grande e poderiam ficar duas no quarto de hóspedes e uma comigo, no meu quarto. Os rapazes ficariam na casa de Bernardo.
          Outra coisa que estava consumindo meu tempo – e meus nervos – era a minha colação de grau. Seria no dia em que os jovens de São Paulo chegariam. Nós havíamos avisado sobre o evento, mas como eles tinham passagens compradas para o Nordeste saindo de Brasília, iria furar o esquema deles, então viriam preparados para irem à minha colação. Confesso que estava totalmente sem graça com relação a isso. Deixamos bem claro para as garotas que elas estariam à vontade para não irem se assim quisessem, mas acho que, por uma “política de boa vizinhança”, elas aceitaram educadamente participarem do evento. Como Bernardo iria com a família dele, os rapazes também aceitaram o convite.
         Tomei um banho demorado e fui para cama cedo. Não queria me atrasar na chegada ao Aeroporto. Verifiquei o cartaz que tinha pintado essa manhã – ideia de Bernardo – e fui deitar. Demorei para pegar no sono. Não sei se pelo cansaço, pela visita de amanhã ou se pela formatura, mas estava muito agitada para conseguir dormir. Olhei para minha beca pendurada no cabide do lado de fora do armário. Como passou rápido!
           Conheci Renato no meu terceiro semestre de faculdade. Tinha vinte anos à época. Era impossível não contar minha vida a partir de Renato. Eu tinha consciência disso.
      Agora estava com vinte e três anos, formada em artes plásticas, e trabalhando numa Casa de Restauração de Artes. Deveria estar feliz – e de certo modo até estava – mas ainda havia um espaço vago, o enorme buraco que Renato deixara. Eu queria não pensar nisso, mas era quase impossível.
          A família de Renato já estava em Brasília. Passamos o dia inteiro juntos. Eles estavam hospedados na casa de um tio de Renato que morava aqui. A presença deles e toda essa festividade traziam à tona, com força, a ausência de Renato.
       Eu havia feito uma promessa para mim mesma que não iria choramingar pelos cantos. Meus pais estavam felicíssimos com minha formatura e não mereciam menos que minha completa presença e gratidão a eles.
        Lembrei-me da conversa que tivemos dias antes, quando eles insistiram em me dar a passagem para Paris. Era um projeto antigo. Assim que fui aprovada no vestibular, eles me prometeram que me dariam uma viagem para conhecer o museu do Louvre em Paris. Naquela época eu fiquei empolgadíssima com a ideia e não via a hora de conhecer pessoalmente algumas das maiores obras de arte que o mundo já viu. Mas depois da morte de Renato... Eu não queria viajar. Não agora. Não desse jeito.
          Fechei os olhos com força para tentar dormir, fiquei quieta deixando que meu corpo relaxasse até que os meus olhos diminuíram a pressão, e eu entrei naquele primeiro estágio do sono quando seus últimos pensamentos se misturam com o sonho.
         Minha formatura se misturando com meus pais e a família de Renato. Eu estava vestida com a beca e procurava por alguém na multidão, mas ele não estava lá. Todos sorriam para mim, me abraçavam e eu não conseguia entender porque ele ainda não havia chegado. Então eu o vi, vindo em minha direção, mas estava diferente. Não era Renato. Ele sorria para mim com um buquê de flores na mão. O que mais me assustou no sonho é que minha angustia havia passado. Era por ele que eu procurava. Meu rosto se iluminou e eu corri para os seus braços. Fiquei aninhada naquele abraço protetor me sentindo segura e completa. Não quis levantar os olhos, queria continuar ali. Eu estava feliz...
         Acordei sobressaltada com o meu celular despertando. Eram sete horas da manhã. Passei a mão pela testa completamente atordoada. O sonho era tão real que eu quase podia sentir os braços dele ainda ao meu redor. Que sonho foi aquele? Era a primeira vez, em quase dois anos, que eu não sonhava com Renato. Fiquei intrigada, mas não tinha tempo para pensar nisso agora. Nossos hóspedes chegariam às oito horas e viriam direto tomar o café da manhã em minha casa.
        Arrumei-me, peguei o cartaz, liguei para o Bernardo e fomos buscá-los. Flavinha iria conosco. Eles finalmente estavam namorando.
          A lembrança daquele dia sempre me fazia rir. Estava em casa separando alguns artigos para o trabalho de restauração de uma estátua, quando os dois entraram em meu quarto. Ambos estavam de braços cruzados e me encarando com os olhos estreitos e a boca apertada, numa expressão clara de ameaça.
         _ O que foi? – perguntei na maior inocência – O que aconteceu?
Eles caminharam juntos em minha direção – com certeza tiveram muito tempo para planejarem isso – e, um de cada lado, me chaparam um beijo na bochecha.
        _ O que significa isso? – perguntei aturdida
        _Você é a melhor amiga do mundo! – Flavinha falou efusivamente me apertando os ombros num abraço desengonçado.
        _ Meu Deus, o que eu fiz? – perguntei olhando para Bernardo.
        _ Você guardou o nosso segredo. – ele falou sorrindo
        _ Então... – comecei gaguejando – Quer dizer que... vocês... vocês... – meu olhar corria de Flavinha para Bernardo – Vocês finalmente...?
         _ É V. A gente tá namorando. – A Flavinha me ajudou com as palavras. Eu estava guardando aquilo há tanto tempo que tive dificuldade em concluir a frase.
       Levantei e comecei a saltar e gritar no quarto. Flavinha me abraçou e me acompanhou naquela “dancinha” maluca, depois Bernardo se juntou a nós duas gritando e pulando. Minha mãe apareceu na porta e ficou sorrindo daquela cena. Parecíamos ter cinco anos de idade.
           Eles me contaram como tudo aconteceu, de como Bernardo foi até a casa de Flavinha conversar com os pais dela e de quando foram à igreja conversar com o pastor. Agora estava tudo certo. Eles eram oficialmente namorados. Fomos comemorar numa pizzaria, nós três. Eu pude finalmente contar aos dois o segredo de ambos. Ainda assim pensei que os dois fossem desmaiar enquanto eu falava sobre cada um. A Flavinha ficou corada, e Bernardo virou o “tomatinho hemorrágico”de sempre. Foi uma noite muito engraçada.
         Chegamos ao portão de desembarque com tempo de sobra. Ficamos fazendo planos para o congresso e conversando sobre minha formatura, que seria aquela noite. Meu estômago esfriava quando me lembrava disso.
       Acompanhávamos pelo painel de desembarque o horário do voo deles. Estava dentro do horário previsto. Seguimos para o portão indicado com o cartaz na mão. Eu havia pintado uma caricatura de cinco jovens com malas – três moças e dois rapazes – com camisetas do congresso e uma faixa por cima deles dizendo “Bem vindos a Brasília.”
        Começou o desembarque e, de cara, vimos um grupo vindo em nossa direção. Traziam apenas bagagens de mão, mochilas e bolsas de viagem.
           As três moças eram bem diferentes umas das outras. Uma era japonesa de cabelo despontado, a outra era uma negra alta de cabelos armados e tinha um sorriso muito simpático, a última parecia muito tímida, e era a mais baixa das três, de cabelo castanho e bem curtinho. Um dos rapazes se aproximou com um enorme sorriso. Era alto, usava óculos e tinha os cabelos ruivos como os de Flavinha. O outro estava mais atrás e nos cumprimentou com um meneio de cabeça e um meio sorriso, apontou a câmera em nossa direção e tirou uma foto, parecia ser o mais velho dos cinco. Foi o rapaz sorridente que se apresentou.
           _ Que recepção! – falou estendendo a mão para Bernardo – Vou querer levar esse cartaz. – disse nos cumprimentando com beijos no rosto.
          _ Deixem-me apresentar a nossa “gangue” de São Paulo. – ele continuou sorrindo com o sotaque paulistano característico – Essa é Saeko, a do meio é Bianca e a baixinha ali é Nicole, eu sou Marco e o grandão ali é o Sérgio.
Cumprimentamos a todos e fomos para os carros conversando sobre a viagem. Marco era o tagarela do grupo, falava tanto que os outros quase não disseram nada, na verdade apenas a Saeko e a Bianca disseram mais de uma frase. Nicole e Sérgio limitaram-se a comentar sobre a diferença de temperatura entre Brasília e São Paulo. Lá estava muito frio, enquanto aqui o tempo estava ameno. Eu levei as moças comigo e Bernardo e Flavinha foram com os rapazes.
No caminho tivemos oportunidade de conversar. Falamos do tempo, da viagem, do trabalho que eles estavam fazendo de promoção e da minha formatura. De novo deixei-as livre para ficarem em casa se estivessem muito cansadas. Sabia que elas teriam que viajar novamente em alguns dias, e elas poderiam querer descansar um pouco. Mas todas se mostraram muito simpáticas com a ideia de irem à minha formatura, principalmente Saeko, que parecia a mais falante e espevitada das três.
Isso me deixava ainda mais preocupada. A plateia só estava aumentando. Eu sentia que a “casca” da ferida estava muito fina, e pronta para romper ao menor toque, e ter um número considerável de pessoas prestando atenção em mim, só aumentava ainda mais minha tensão.
Em casa acompanhei as moças para levarem suas bagagens aos quartos, enquanto os rapazes foram para cozinha com Bernardo. Minha mãe já estava nos esperando.
Bianca e Nicole ficaram no quarto de hóspedes e Saeko ficou no meu quarto. Quando fomos nos juntar a eles na cozinha, todos já estavam sentados nos aguardando para a oração. Marco se ofereceu para orar e agradeceu pela refeição e por nossa hospitalidade. Ele parecia muito à vontade. De todos do grupo, Sérgio e Nicole eram os mais calados. Ela parecia realmente muito tímida, mas Sérgio parecia ser mais observador. Tinha um olhar um pouco tristonho, algo melancólico que conferia à sua expressão um ar de dor permanente, ou algo assim.
Tentei puxar conversa com Nicole para que se sentisse mais à vontade conosco. Ela sorria com um jeito muito meigo e respondia a tudo que eu perguntava, mas não passava disso. Então decidi deixá-la à vontade. Voltei-me para Sérgio com a mesma estratégia.
_ Então, Sérgio? Você já conhecia Brasília?
_ Já estive aqui anteriormente, há uns cinco anos. Mas estava a trabalho. – seu sotaque era mais suave que o de Marco, mas ainda tinha aquele “r” pronunciado, característico de paulistano.
_ Você trabalha com o quê? – perguntei puxando conversa.
_ Hoje eu faço consultoria empresarial, mas na época eu vim como diretor de uma empresa. – ele falava com simpatia. A voz era um pouco rouca...
_ Legal! Mas então você não conheceu mesmo Brasília? – perguntei em tom de brincadeira.
_ Acho que não. – ele falou também sorrindo – Foi uma viagem de dois dias apenas, e eu fiquei quase o tempo todo no hotel. Conheço o caminho do hotel ao aeroporto e vice versa.
_ Nosso tour será amanhã à tarde. – Bernardo disse animado – Queremos que vocês conheçam as belezas da nossa cidade.
As conversas permaneciam paralelas. Bernardo estava discutindo alguns detalhes do congresso com Marco e Bianca. Nicole estava conversando com Flavinha. Minha mãe conversava com Saeko, que aparentemente, era especialista em comida japonesa.
_ E você? – me perguntou Sérgio. – A formatura que iremos hoje é a sua?
Fiz uma careta.
_ É. Mas... é sério, vocês não precisam ir. Eu sei como formatura é chato, principalmente de alguém que vocês mal conhecem...
_ Deixa eu entender... – ele falou com um braço apoiado na mesa e o outro segurando a colher dentro da xícara. – Você não quer que a gente vá a sua formatura? – sorriu maliciosamente.
_ Não! – minha voz saiu mais alta do que eu pretendia, chamando a atenção das outras pessoas na mesa – Não! – falei mais baixo e sorrindo para ele.– Não é isso. Imagina?! Por favor, me perdoa se estou passando essa imagem. É que eu realmente quero deixá-los à vontade para dizer “não” se vocês não quiserem ir, mas seria um prazer tê-los por lá. – corrigi rapidamente.
_ Você não me parece tão empolgada assim... – Ele continuou
_ Dá para ver, é? – falei sem graça.
Ele sorriu assentindo, baixando os olhos para sua caneca.
_ Nervosa?
_ Acho que um pouco. Essa ideia de “multidão” me deixa meio tensa.
_ É o baile? – ele falou tomando um gole do café.
_ Não. Não vou ao baile. Minha turma não compartilha a mesma ideia de diversão que eu. – sorri – Meus pais farão um coquetel no salão da igreja mesmo, hoje à noite, só para os amigos e, é claro, vocês estão convidados. – sorri de novo.
Ele endireitou-se na cadeira sorrindo também.
_ O pastor Moisés mandou um presente de formatura para você. – ele falou casualmente.
_ Para mim? – falei sinceramente surpresa – Ah! Ele é muito querido... – suspirei – Você poderia... Não... deixa para depois. – continuei falando para mim mesma.
_ O quê? Quer buscar agora? Claro! Está no carro de Bernardo.
Levantei num salto.
_ Ber, empresta a chave do carro?
Bernardo, que estava concentrado na conversa, pegou a chave no bolso da calça sem me olhar. Agradeci e disparei para fora de casa.
O pastor Moisés era o meu pastor preferido. Ele já havia saído da nossa igreja há uns cinco anos. O tempo em que ele esteve conosco foi memorável.
Ele desenvolveu um trabalho muito intenso com os jovens. Foi nessa época que muitos juntaram-se a nós. Um deles era Bernardo.
_ Como ele está? – perguntei enquanto caminhávamos em direção ao carro.
_ Bem, como sempre. – ele sorriu enfiando as mãos nos bolsos da calça – Ele parece uma rocha inabalável, sempre sorrindo, sempre otimista.
_ Ele é muito especial... – falei com nostalgia.
_ É mesmo. – ele fez uma pausa e começou com um sorriso – Sabia que foi ele que me levou até Jesus? E também foi ele que me discipulou.
_ É? Que legal! – Ter o pastor Moisés como discipulador era um privilégio. Ele era um homem muito sábio e um profundo conhecedor da Bíblia. Tinha os dons de discernimento e sabedoria, e quando tinha uma intuição quanto a uma pessoa, investia pesado nela. Bernardo fora uma dessas pessoas e, hoje, reproduzia o que havia aprendido de forma espontânea. Prova disso era Rafael.
Abri o bagageiro do Celta de Bernardo e Sérgio pegou sua mochila, retirou de lá uma caixa azul e me entregou. Acariciei a tampa da caixa lembrando-me do rosto rechonchudo do pastor Moisés. Quando abri fiquei maravilhada!
_ Fotos? – eu amava fotografias, e o pastor Moisés sabia disso. No seu tempo de ministério, era ele a nossa “memória digital”. Fotografava todas as coisas que fazíamos e tinha o hábito de nos presentear depois com algumas delas. – Obrigada, Sérgio! – Me virei para abraçá-lo. – Por favor, “entregue” esse abraço ao pastor por mim.
_ Claro! – ele sorriu surpreso. Parecia até um pouco resistente em me abraçar. Foi um abraço frio e distante, o que me deixou sem graça.
Eu comecei a passar foto por foto. Havia algumas de ações dos jovens em creches e orfanatos, de peças de Natal, Páscoa, de encontros entre os jovens, na pizzaria, no parque... Mas uma foto em especial me chamou a atenção. Eu estava no parque da cidade tocando violino. Meus olhos estavam fechados, como sempre fazia, e meus cabelos estavam um pouco mais curtos, soltos e jogados para trás pelo vento. Era um daqueles raros dias em que eu estava de vestido. Eu me lembro que estava muito calor e coloquei um dos vestidos de verão que minha mãe havia comprado. Era um vestido na altura dos joelhos, com estampa delicada de flores azuis. Mas eu não estava exatamente no parque. Havia um fundo do Congresso Nacional e um pôr do sol fantástico atrás de tudo. A foto estava em tons de sépia e o resultado final era maravilhoso. Era como se a luz do sol tivesse tingido tudo com aquele tom dourado. Fiquei parada segurando a foto, admirando o excelente trabalho de montagem.
_ Meu Deus! Que lindo!
_ É. – ele falou olhando por cima do meu ombro. Parecia satisfeito. – Então devo dizer que você gostou? – ele falou sorrindo.
_ Se eu gostei? Eu amei! – abracei a caixa – E essa foto, então? Meu Deus! É perfeita!
_ Então você toca mesmo violino. – ele continuava com o mesmo tom satisfeito.
_ Por quê? Você acha que eu só estava posando para foto? – falei fingindo-me ofendida
_ Bom... É que não é um instrumento muito comum e, pelo visto, nem muito fácil. – seu tom de voz acompanhou a brincadeira
_ Oh... Acho que entendi... O senhor está duvidando da minha capacidade? – Falei sorrindo e destacando as palavras enquanto voltávamos para dentro de casa
_ Não exatamente. – ele segurou a porta para que eu passasse.
Entrei na cozinha mostrando as fotos. Minha mãe espalhou tudo na mesa. Como eu imaginei a foto mais comentada era a foto com o violino.
_ Você toca violino, V? – Saeko parecia em êxtase.
_ Desde os nove anos. – minha mãe respondeu orgulhosa
_ Dá um “palhinha” para gente, V? – Saeko estava com as mãos juntas fazendo cara de súplica. Foi seguida por palmas de incentivo de Flavinha, e logo os outros estavam acompanhado o coro de “toca, toca.”
Fui até o meu quarto, sorrindo, buscar meu violino. Peguei algumas partituras e voltei. Minha mãe havia conduzindo todos para a sala. Já estava acostumada com isso. Meus pais sempre pediam que eu tocasse para algum amigo quando alguém vinha nos visitar. “Esse orgulho bobo de pais...” – pensei
_ Vocês têm alguma preferência? – falei retirando o violino do estojo.
_ “Mas perto quero estar,” filha, é linda! – minha mãe se antecipou.
_ Mãezinha... Primeiro os convidados – todos sorriram.
_ Essa! Essa! Por favor! – Saeko batia palmas de excitação. – Não foi essa que tocaram no filme Titanic?
_ Essa mesmo! – minha mãe falava toda derretida.
Comecei a tocar. Como sempre fazia, fechei os olhos e deixei a melodia suave do violino me inundar. Nessa hora eu não tinha consciência de onde estava, e nem se havia alguém me observando. Eu gostava de tocar músicas de cor por esse motivo. Não precisava ficar olhando para a partitura nem percebendo as pessoas ao meu redor e isso, constantemente, me deixava nervosa, o que acontecia só no comecinho da música, porque logo eu estava completamente absorvida e flutuando entre as notas e acordes do som mágico do instrumento.
Quando terminei, Saeko estava chorando. Olhei para Sérgio que aplaudia com um olhar sombrio, algo entre a raiva e a frustração. Tentei sorrir para ele, mas ele não devolveu o sorriso, simplesmente desviou o olhar. Fiquei sem entender essa reação.
Saeko se levantou e veio me abraçar muito emocionada. Minha cabeça ainda tentava processar aquela reação de Sérgio. Ele parecia tão simpático há pouco tempo... Será que o violino trazia alguma recordação ruim para ele? Antes que me pedissem para tocar outra, eu guardei o violino. Não queria ser a causa de lembranças ruins para ninguém. De lembranças dolorosas eu entendia perfeitamente.
Bernardo se ofereceu para levá-los em casa para descansarem um pouco antes da minha formatura. “Vamos deixar as moças se arrumarem”, ele disse.
Acompanhei-os até a porta e me despedi de todos. Sérgio ficou por último.
_ Você se importaria se eu tirasse algumas fotos sua na formatura? – Seu sorriso parecia me pedir desculpas.
_ Claro que não! – sorri encorajando-o. Ele não precisava se desculpar por nada. Eu, melhor que ninguém, sabia como era transitar entre o mundo real e o mundo das recordações.
_Ok. Te vejo à noite. – ele se curvou para me dar um beijo no rosto. Permanecia com as mãos nos bolsos da calça.
_ Tá bom, então. Eu serei aquela de beca preta e faixa branca. – sorri, segurando seu braço enquanto ele me beijava. Ele tinha um perfume suave, meio cítrico...
Fiquei no portão até que o carro de Bernardo virasse na esquina. Pensei na minha agenda do dia. Depois do almoço iria para o salão. Minha mãe havia insistindo muito nisso. Por mim, me arrumaria em casa mesmo. Eu aceitei, mas impus alguns limites; nada muito “papagaiado’ e eu teria que olhar no espelho e me reconhecer.
Em casa as meninas já estavam se organizando. Elas ficariam conosco até quinta-feira. Como eles compraram pacote de viagem, tinham que permanecer um tempo mínimo em cada capital.
Eles estavam viajando com recursos próprios. Todos haviam marcado férias para essa data com a mesma finalidade.
Estavam bastante empolgados com a organização e investiram muito nesse congresso. O tema era “Jovens que Influenciam uma Geração,” e era a primeira vez que uma comissão fazia uma ação desse porte. A empolgação deles era contagiante, e já fazia parte do marketing do Congresso, mesmo que isso não fosse oficial.
Cada membro do grupo tinha uma função. Marco era o presidente da comissão e responsável pelo grupo; Bianca era a relações públicas e cuidava dos contatos entre as igrejas e o envio de material; Saeko era a secretária; Nicole a tesoureira e Sérgio era o responsável pela produção de material visual do congresso, por isso estava sempre com a câmera na mão.
Depois do almoço as meninas foram descansar e eu fui para o salão. Minha mãe ficaria em casa com elas até meu pai chegar do trabalho. Eu iria no meu carro, até porque precisava chegar mais cedo.
O salão foi mais indolor do que eu imaginava. Fiz as unhas com uma cor clarinha, arrumei o cabelo com uma escova que definiu meus cachos, fazendo-os cair suavemente pelas costas. Não estava artificial, e iria combinar perfeitamente com o meu vestido “estilo helênico”. Minha mãe havia escolhido para mim um modelo de vestido na altura dos joelhos num tom rosa chá e detalhes dourados que marcavam a cintura. Era um bonito vestido; tive que concordar. A maquiagem também estava suave e discreta. Olhei-me no espelho, e aprovei o resultado.
Em casa Saeko já estava acordada remexendo em sua bolsa.
_Uau! – ela sorriu – Você está linda!
_Obrigada. – sabia que estava corando – Você descansou?
_ Ah sim! – ela disse se espreguiçando – Sua cama é ótima, muito parecida com a minha. Senti-me como se estivesse em minha casa.
_ Que bom!
_ Posso ver o seu vestido? – ela colocou-se de pé a meu lado. Saeko era uma garota vibrante. Ela se relacionava como se já me conhecesse a vida toda! Talvez, para qualquer outra pessoa, esse traço de sua personalidade fosse assustador, mas para mim, era tranquilo. Minha mãe era exatamente assim, então eu já estava acostumada.
Peguei meu vestido no armário e estendi em cima da cama.
_ Lindo! Tem tudo a ver com seu curso. Você ficará parecendo uma pintura antiga. – ela sorriu para mim.
_ Acho que era essa a ideia da minha mãe. – sorri sem graça.
_ Posso te ajudar a se arrumar? – Ela tinha aquele mesmo brilho nos olhos que minha mãe tinha quando ficava empolgada com alguma coisa.
_ Claro! – sorri com a semelhança.
Ela retirou o vestido do cabide enquanto eu me despia e ajudou a me vestir com cuidado. Virei-me e ela fechou o zíper, ajustando a faixa na cintura. Sentei-me na cama para calçar as sandálias, enquanto ela remexia a própria bolsa.
Ela retirou de lá um bracelete dourado, muito bonito.
_ Sabia que tinha trazido! – Ela falou esticando-o para mim.
_ É lindo! – segurei olhando a delicada trama de pequenas folhas que se torciam em fios dourados.
_ Nem sei por que eu coloquei isso na mala... – ela riu dela mesma. – Mas vai combinar maravilhosamente bem com o seu vestido.
_ Saeko... Obrigada! – dei um abraço nela. – Você é um amor!
_ Imagina! – ela sorriu satisfeita.
Algumas batidinhas na porta e uma voz conhecida.
_ Posso entrar? – Flavinha estava com a cabeça curvada para dentro do quarto.
_ Uau!!! Você está lindona!!! – ela continuou, cruzando o quarto segurando minha mão, me obrigando a girar nos calcanhares.
_ Ai Flavinha... Você sabe que eu não gosto disso...
_ Mas você está maravilhosa! – ela me censurou – Isso é um fato!
_ Mas o que você está fazendo aqui há essa hora? – não tínhamos combinado nada. Eu iria sozinha para o salão de formatura e encontraria todos lá depois para irmos ao coquetel.
Flavinha segurou minha mão e nos sentamos na cama. Saeko, pressentindo uma conversa mais íntima, arrumou uma desculpa qualquer para sair do quarto.
_V... – ela começou com um suspiro – Você não imaginou que te deixaríamos sozinha hoje, não é mesmo? – ela estava cautelosa.
Não respondi. Eu sabia do que ela estava falando. Essa data trazia de volta a memória, não de Renato – essa era impossível de ser retirada da minha mente – mas a memória da dor. O dia de hoje seria o final de uma fase e o início de outra. O coquetel – que eu lutei muito para que não acontecesse – seria também nossa festa de noivado. Claro que isso eram apenas planos. Na verdade seria uma surpresa para todos. Renato iria pedir minha mão em casamento, e eu já sabia disso. Apenas nós dois e Flavinha sabíamos.
Continuei perdida em minhas lembranças e Flavinha arrumava uma mecha do meu cabelo.
_ E o Bernardo? – perguntei ainda com a cabeça baixa
_ Ele está aí na sala. – ela sorriu – Foi dele a ideia de trazermos todo mundo para cá.
_ Todo mundo?
_ Sérgio e Marco também estão com a gente.
Deixei meu corpo cair na cama com um suspiro de reprovação.
_ Não, Flavinha...
_ V, não adianta argumentar, amiga. Você não vai sozinha e pronto. – ela estava com aquele jeito autoritário que eu conhecia muito bem.
_ O que vocês disseram para os rapazes, para justificar essa comitiva?– minha voz era baixinha
_ Eles já sabiam, V... – Flavinha escolhia as palavras – Pelo menos sobre o acidente...
Eu joguei o travesseiro no rosto gemendo.
_ V... – Flavinha disse retirando o travesseiro do meu rosto – O pastor Moisés pediu oração por você quando tudo aconteceu. Eles já sabiam quando chegaram à Brasília.
_ Vocês conversaram alguma coisa sobre... sobre isso? – eu estava nervosa com essa ideia. Eu não queria ninguém me observando hoje, mesmo porque, eu tinha certeza que seria uma noite difícil demais para mim.
_ Marco perguntou como você está reagindo. Ele nos contou que os jovens de lá fizeram reuniões de oração por sua recuperação física e emocional.
_ E o que vocês disseram? – minha voz era um sussurro.
_ Bernardo disse que você estava reagindo bem. – a voz dela era baixa e preocupada. Seus olhos procurando no meu rosto algum sinal de “desabamento” – Ele disse que nos últimos meses você tem estado mais forte.
Melhor assim”, pensei. Levantei devagar, Flavinha arrumou o laço em minhas costas e ajeitou meu cabelo.
_ Vamos? – ela me estendeu a mão.
Respirei fundo. Já que não tinha outro jeito, então iria acabar logo com isso tudo. Peguei minha beca – que Flavinha rapidamente tomou da minha mão – segurei a mão dela e caminhamos juntas até a sala.
Flavinha me segurou antes de eu aparecer no alto da escada, me fazendo parar. Ela fez sinal para que eu esperasse. Desceu rápido o lance de escadas e bateu palmas para chamar atenção das pessoas.
_ Pessoal, pessoal! Atenção por favor...
Ai meu Deus!” Pensei em voltar para o meu quarto. Eu não gostava disso e Flavinha sabia muito bem! Tive vontade de não descer e deixá-la com cara de boba lá embaixo.
_ Com vocês, a nossa artista plástica favorita... Virgínia Morello!
Respirei fundo e fiz uma anotação mental de que, assim que eu pudesse, faria Flavinha me pagar muito, muito caro por isso.
Desci as escadas devagar sem olhar para ninguém. Ouvi os aplausos e os elogios.
Minha mãe foi a primeira a me abraçar cheia de aprovação. Meu pai estava logo atrás com um sorriso largo no rosto. Bernardo me abraçou com carinho e depois, um a um dos membros da comissão vieram me beijar. As meninas ainda não estavam prontas. Elas iriam mais tarde com meus pais. Os rapazes estavam muito elegantes, mas Sérgio mantinha aquele ar incômodo e distante que eu vira mais cedo.
_ Então, vamos? – falei sem graça.
_ Eu vou com a V, Ber. – Flavinha segurava minha beca enquanto pegava sua bolsa no sofá.
_ Claro. Nós seguiremos vocês.

Um comentário:

  1. Quanto mistério sobre esse rapaz! hahaha
    Quero ver logo o próximo capítulo e saber o que vai acontecer!
    Muito bom msm!

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