quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Capítulo 01 - LETARGIA

 Capítulo 01


Letargia


     Mais um sábado! Não queria acordar. Já sabia o que me esperava pela frente. Tédio, apatia, desesperança... Continuei deitada com os olhos fechados, tentando me lembrar do sonho. Este parecia tão real que me recusei a despertar. Rolei a cabeça no travesseiro, tentando dormir de novo. Quem sabe eu não continuaria do ponto que parei? Sem dor, sem lágrimas... Seria tão bom um pouco de alegria para variar.
Minha fraca tentativa de me desprender da realidade não estava dando certo, então decidi me levantar para mais um sábado difícil.
          Abri os olhos, direto no espaço vazio da parede. Apenas o parafuso e uma marca que denunciava a existência de um quadro que fora retirado. Olhei demoradamente. Ultimamente eu não tinha certeza do que era pior para mim. Não ver o quadro ou fitar o vazio.
       Quando voltei do hospital, lembro que a primeira coisa que fiz foi retirar o quadro e colocá-lo no corredor, antes de me atirar na cama e romper em prantos. Sei que minha mãe o havia guardado junto com meus outros quadros, mas eu nunca perguntei a ela diretamente. Tive a impressão de tê-lo visto uma tarde em que fazia um trabalho de técnica de expressão bidimensional, no porão de casa. Estava encostado na parede, atrás de outros quadros. Fui muito covarde para ir até lá e ter certeza.
          Eu queria muito ir até lá embaixo, pegar o quadro e pendurá-lo de volta no lugar que era dele, mas tinha medo da dor que isso me causaria. Sabia que não ia conseguir. Minha sanidade estava começando a voltar agora, e eu temia que a menor pressão quebrasse meu controle de novo. Já havia se passado onze meses desde aquela fatídica noite, e a data de um ano estava chegando. Podia senti-la.
            Um ano? Não era possível que já tivesse passado um ano! Tudo ainda era tão claro para mim. A dor, as lágrimas... Tudo era presente e muito, muito forte. Quanto tempo ainda teria que passar para eu me sentir inteira de novo?
               Com um enorme suspiro, saí da cama sem o menor ânimo.
            Como sempre, estava sem apetite, mas resolvi comer para evitar os olhares aflitos e piedosos de minha mãe. Não podia culpá-la. Nos últimos meses eu estava me recuperando aos poucos, mas não podia impedir que ela visse a tristeza que fluía de mim. Era como se uma névoa de dor emanasse dos meus poros. Devia ser horrível para ela presenciar isso dia após dia. Me ver sumindo aos poucos...
               Quando comecei enxergar as pessoas novamente, decidi que elas não deveriam sofrer também. Pelo menos não as pessoas que eu amava. Minha família e meus amigos não seriam mais afetados pelo meu sofrimento. Então, de um tempo para cá, resolvi que seria uma pessoa normal de novo. Pelo menos por fora.
                  Sentei-me à mesa da cozinha e peguei uma caneca para colocar o café. Minha mãe estava de pé, de costas para mim cantarolando uma musiquinha. O cheiro do café dela sempre me fazia bem. O aroma familiar enchendo a casa me fazia sentir segura e aconchegada.
                   _ Bom dia, mãezinha! Dormiu bem?
                   _ Oi, V! Dormi sim, filhinha e você? – ela virou-se para beijar minha cabeça.
                   _ Bem também. – não era de todo mentira. Pelo menos o sonho tinha valido à pena.
                  _ V, a Flavinha te ligou mais cedo. Ela queria saber se vocês ainda iriam ao festival. – minha mãe falou enquanto me passava o telefone.
                   _ Ai! – suspirei, deixando a cabeça bater na mesa – O festival! Que horas são?
                   _ Oito e meia.
                  _ Será que ainda dá tempo? – Falei enquanto discava o número da Flavinha. Tinha me esquecido completamente daquilo. Estava pensando em um monte de desculpas para não ir. Na verdade, esperava que ela já tivesse ido sem mim.
                   _ Alô!
                   _ Oi Flavinha. – suspirei sem esperança. – Pensei que você já tivesse saído.
                   _ V! – disse ela animada. – Estou prontinha, te esperando aqui em casa. Você já tá vindo?
                   _ Tô terminando meu café e saio em vinte minutos.
                   _ Ok. Tô te esperando então. Beijo
                   Desliguei o telefone derrotada. Teria que sair de casa...
                   Usei a desculpa da pressa para tomar apenas o café, mesmo com as reclamações de minha mãe.                                                              Fui para o quarto e peguei a primeira camiseta da gaveta. Coloquei uma calça jeans e um tênis velho, prendi meu cabelo num rabo-de-cavalo e saí correndo para a garagem. Já que não teria outro jeito mesmo, queria acabar logo com aquilo.
                 Em dez minutos estava no prédio da Flavinha esperando por ela. Não estava nem um pouco a fim de sair de casa, mas precisava desses eventos sociais para parecer normal para as pessoas. Todos meus amigos estariam nesse festival de músicas e minha ausência, com certeza, levantaria especulações que eu estava evitando fervorosamente.
            No caminho, fomos conversando sobre amenidades: faculdade, provas, trabalhos... Nada importante. Ficar com a Flavinha era fácil. Ela sempre fora minha melhor amiga e me conhecia tão bem que, às vezes, assustava. Quando tudo aconteceu, foi ela quem respeitou meu espaço tirando as pessoas de perto de mim. Também foi ela quem irrompeu pela porta do meu quarto, gritando comigo, quando minha reação estava demorando demais. Também foi no ombro dela que chorei amargamente por quase uma hora inteira sem dizer uma única palavra, apenas limpando o peito, o cérebro e o coração de toda a dor. Mas não havia lágrimas suficientes para retirar tudo aquilo.
                 Quando chegamos ao festival, já estava lotado. Andamos muito até encontrarmos nossos amigos. Estavam quase todos lá. Era sempre muito bom revê-los. Era tão leve estar com eles, mas ao mesmo tempo uma pressão no meu peito me fazia querer correr dali. Eu sabia o motivo, mas não ia estragar aquela linda manhã de fevereiro pensando nisso. Era a primeira vez que nossas bandas favoritas tocavam juntas na cidade, e a alegria que emanava do nosso grupo era irresistível. 
                 Por algumas horas, me senti normal de novo. Cantamos juntos, pulamos juntos, rimos bastante... Em algumas músicas sentia os olhares de esguelha de meus amigos para terem certeza de que eu continuava bem. Fingia não perceber, embora cada célula do meu corpo chorasse a ausência dele. Eu não queria chorar hoje. Na única música que eu sabia que não resistiria – Bring The Rain, da banda Mercy me – saí andando, com a desculpa de que iria comprar água, enquanto as lágrimas caíam grossas e quentes pelo meu rosto.
               Fiquei tempo suficiente para disfarçar os olhos vermelhos atrás dos óculos escuros, e voltei. Depois disso pulamos muito com o Hillsong e me deixei levar pela alegria do pessoal. Foi uma manhã divertida, afinal.
                 Saímos de lá por volta das duas da tarde. Todos famintos! Resolvemos comer no Mc Donald´s mesmo. Fomos juntos, ainda rindo e comentando sobre as bandas.
                 Meus amigos eram muito especiais. Como eu era grata por eles! Cada um, do seu jeito, tentou me apoiar e me trazer de volta da tragédia. Alguns ainda pareciam um pouco cautelosos com alguns assuntos, e eu percebia que mudavam o tom de voz, ou procuravam assuntos mais amenos quando viam em mim algum traço de dor. Eu fingia não perceber nada e tentava agir da forma mais natural possível, mas ainda era muito difícil. Continuar viva estava sendo uma tarefa terrivelmente difícil para mim. Eu ainda não havia me recuperado de tudo aquilo. Eu ficava pensando quanto tempo ainda teria que passar até eu me sentir inteira de novo. Acho que “nunca mais” seria a resposta certa.
                 Resolvemos passar na igreja para acompanhar o ensaio do pessoal antes de irmos para casa. O barulho dos instrumentos sendo montados e de caixas sendo arrastadas era tão familiar que fechei os olhos para apreciar a nostalgia. Lembrei-me de quando fazia parte daquilo. Dos ensaios, das brincadeiras, das músicas... Fazia tanto tempo que eu não tocava... Por um momento fiquei lembrando os movimentos, os acordes e o cheiro do meu violino, esquecido num canto do porão junto com outras lembranças dolorosas. Senti saudades do som.
                    _ Tudo bem? – Flavinha havia se sentado sem que eu notasse. O tom de sua voz era cauteloso e preocupado.
              _ Tudo! Só estava apreciando o barulho do pessoal.
              _ Que bom que você está aqui. Quero dizer, estar aqui de verdade, entende? Acho que é a primeira vez que você realmente – e ela ressaltou essa última palavra – está aqui não apenas de corpo presente. É bom ver você... ver você...
              _Viva? – completei numa voz sussurrada.
            _ É – disse ela no mesmo tom. – Você ficou muito tempo longe da gente. Mesmo quando estava aqui, parecia não estar. Seus olhos estavam sempre desfocados e você nunca... – ela parou subitamente estudando minha reação às suas palavras. – Desculpe. Eu não quero te cobrar nada. Eu sei que não tem sido fácil para você. – ela parou de novo. – Ah, deixa para lá! Não vou mais falar no assunto.
              _ Não! – falei segurando seu braço. – Eu... – hesitei um pouco – Eu não posso continuar evitando isso. Sei que fiz você sofrer todo esse tempo. – suspirei – Sei que fiquei... “ausente” um longo período e agradeço tudo que vocês fizeram por mim e continuam fazendo até agora. Eu reconheço que vocês foram muito melhores do que eu merecia, e não sei se um dia vou conseguir retribuir esse carinho e apoio de vocês.
             _ V, não diga isso. Você sabe que te amamos.
             _ Eu sei. – abaixei a cabeça e a voz – E obrigada por isso também.
             Ela já estava me abraçando. Ficamos um tempo ali, abraçadas, em silêncio.
             Quando percebi, vi que não estávamos mais sozinhas naquele abraço. Aos poucos meus amigos se juntaram a nós. Estávamos todos abraçados e então pude sentir que não era só eu que chorava.

Voltei em casa para tomar banho e voltar para reunião da noite. Cheguei com tempo e fui direto para o chuveiro. Meus pais não reclamaram minha ausência. Estavam tão felizes por eu estar fora de casa novamente que não iriam estragar tudo com perguntas.
              Debaixo do chuveiro, me ensaboei devagar. O banho sempre era um momento onde eu colocava os pensamentos em ordem. Afinal, meu sábado não tinha sido tão terrível como eu pensei que seria. Estive com meus amigos, rimos, brincamos, e pela primeira vez desde que tudo acontecera, eu pude falar, mesmo que de forma tímida, que eu era grata por eles não terem desistido de mim. Agora eu parecia mais perto da normalidade do que jamais estivera desde muito tempo.
             Foi quando, inconscientemente, senti a cicatriz perto da minha cintura. Parei os dedos ali e uma pontada de dor, que ia muito além do meu corpo, me despertou do pensamento. De repente eu havia voltado àquela noite terrível.
                 A água do chuveiro agora era a água da chuva. O barulho do carro rodando e capotando encheu meus ouvidos. A dor aguda do choque, e a imagem dele com a cabeça pendida para o lado, preencheram minha visão. O horror havia voltado.
                 Minhas pernas perderam a sustentação e eu me abaixei lentamente até me ajoelhar no chão do banheiro. Estava chorando novamente. Não de forma convulsiva como tinha chorado todos esses meses. Meu choro era baixo e doloroso. Será que eu poderia sorrir de novo sem me sentir culpada? A pergunta certa não era se eu “podia” sorrir, mas se eu “deveria”... Não me parecia justo aquilo tudo. Sonhos e planos destruídos todos de uma só vez... Fechei os olhos e me deixei voltar àquela noite que não me abandonaria por muito tempo.
                   Estávamos indo para casa, depois de um animado jantar com o pessoal. Tínhamos nos divertido muito com as histórias de Dudu. Ele sempre fazia a gente sorrir.
                    Estava aninhada nos braços dele e sentia sua cabeça apoiada na minha como sempre fazia. Entre uma piada e outra, ele beijava meus cabelos, e eu beijava suas mãos. Aquele era o lugar mais confortável do mundo para se estar.
                _ Fala a verdade, Dudu. – Renato disse com sua voz doce.
                _ Mas é verdade, cara! Eu não corri daquela vaca. Eu corri para fechar o carro.
               _ Pra quê? Pra vaca não roubar seu carro? Você tava se borrando de medo, cara, confessa.
               _ E você, Renato? Como você viu tudo isso se você foi o primeiro a correr?
               Rimos todos. A risada dele me apertou em seus braços com força. Ele estava cobrindo meu rosto para que eu não risse também.
               _ Deixa ela ouvir o tipo de namorado que ela tem, oh “Mimoso”! – essa era a piadinha preferida de Dudu. Uma referência à cidade natal de Renato, Mimoso de Goiás. – Deixa ela ver o cara corajoso que você é.
               _ Ela já sabe, Dudu. Se ela ainda não me mandou embora eu não vou ficar brincando com a sorte. – ele puxou meu rosto e me beijou com suavidade na testa.
                _ Além disso, – continuou – você se esquece de onde eu venho? Fui criado no meio desses bichos, cara. Sou profissional da área e não vou correr de vaca nem de qualquer outro animal. – ele brincou com um forçado ar petulante.
               _ Argh! – Dudu bufou enquanto sorria. – Eu não sei como você aguenta esse cara, V!
              _ Ele é meu herói, Dudu. – continuei com a brincadeira de Renato, beijando suas mãos entrelaçadas nas minhas – Não posso me queixar. Além do mais eu não vou cair nessa sua história. Não foi só ele que te viu correndo da vaca, temos todo o acampamento para testemunhar contra você.
              Rimos de novo. A conversa continuou animada até que, aos poucos fomos nos despedindo e caminhando em direção aos carros. Chovia bem fininho quando saímos. 
              Nada que atrapalhasse realmente, mas o céu denunciava que uma chuva grossa estava a caminho. Eram as chuvas de março que estavam acabando, mas que, por causa do calor que fazia durante o dia, vinham com muita força à noite.
              _ Amanhã eu passo na sua casa às nove horas. – ele falou enquanto abria a porta do carro para mim.
              _ Mas tão cedo! – reclamei. – Por quê?
            _ Deixa de preguiça. Nós já tínhamos combinado. – ele disse me abraçando e me olhando nos olhos.
           _ Não é preguiça. – reclamei de novo – É só que já é tão tarde agora, e amanhã vou querer dormir um pouquinho mais. Poderíamos deixar isso para a tarde. Depois iríamos ao cinema. Que tal?
          _Virgínia Morello, você precisa terminar aquele painel antes do feriado! Do contrário, não poderemos viajar. – ele segurou meu rosto entre as mãos e continuou num tom divertido. – Eu não vou deixar você estragar meus planos, mocinha.
          _ Tá bom! – falei rendida. – Nove horas, então.
          A chuva começava a engrossar. Ele sorriu, ainda segurando meu rosto. Beijou minha cabeça, minha testa e meus lábios. Sorriu daquele jeito doce de sempre, e esperou que eu entrasse. Fechou a porta dando a volta e parando na frente do carro, fazendo aquele gesto que era só meu. Fechou a mão fazendo o V do meu nome e batendo duas vezes no coração. Era o jeito que ele usava para “dizer” que me amava quando não podia realmente dizer. Eu sorri e atirei-lhe um beijo, pedindo que ele entrasse logo por causa da chuva que agora caia grossa e barulhenta.
            Saímos do estacionamento do shopping e me assustei com a força que a chuva havia tomado. No caminho, fomos conversando sobre a viagem do feriado. Já estávamos planejando tudo há algum tempo.
            _ Minha mãe vai enlouquecer com a surpresa. – ele disse animado.
        _Você não acha que deveríamos avisar? Chegar assim com um bando de gente... Não é muito educado.
            _ Minha mãe ama ter a casa cheia, e já tem um tempo que não vamos lá. Sei que ela ficará feliz demais em nos receber. O Arthur, a Érica e as meninas também vão adorar. Além disso, não é tanta gente assim. Somos só nós dois, o Dudu, a Luiza e a Flavinha.
              _O Dudu você pode contar três vezes. Ele é muito espaçoso...
              Ele sorriu jogando a cabeça para trás.
             A rua estava vazia e escura. Quase não tinha carros, apenas a chuva que agora caía com mais força. Ele aumentou a velocidade do limpador de pára-brisas e passava o punho da jaqueta no vidro do carro para tentar enxergar melhor.
             _Credo, Renato! A chuva tá muito forte. Vamos encostar um pouco? – falei um pouco nervosa.
             Não me lembrava de sua resposta. Eu nunca consegui me lembrar a última coisa que ele dissera. Uma luz forte veio em nossa direção e ele virou o volante com força para não atingirmos a moto que vinha de frente, na contramão. Com o golpe do volante, o carro derrapou de lado e acertou a guia da calçada, capotando várias vezes. Meus braços giravam em todas as direções. O barulho de vidro quebrando e ferro sendo retorcido se misturavam aos meus gritos. Senti uma pontada aguda na linha da minha cintura e a dor me silenciou. Não conseguia respirar direito. Quando o carro finalmente parou, senti uma pressão na perna, e algo quente escorrendo pelo meu rosto. Com os olhos molhados pela chuva ou pelas lágrimas, não sabia direito, vi a cabeça de Renato pendida sobre o volante. Não podia ver seu rosto. Ele não se mexia. Eu ainda estava consciente quando os bombeiros chegaram.
               Ouvia vozes sem discernir exatamente o que diziam. “Retirem com cuidado”. “Não movam a coluna dela.” “Não retirem o ferro ainda, pode romper algum órgão” “Rápido com isso, ela está perdendo muito sangue”. Todas as frases eram para mim.
                    Porque ninguém falava dele? Eu queria perguntar alguma coisa, mas não conseguia falar. Eles tinham colocado uma tala para proteger minha coluna, que travava meu queixo. Eu ainda tinha dificuldades para respirar. A chuva no meu rosto me deixava cega, e eu não conseguia vê-lo sendo socorrido também. A ambulância saiu em disparada para o hospital. Não dava para entender direito o que estava acontecendo.
                       Vozes no rádio da ambulância falavam em um acidente grave, próximo ao Zoológico e que estavam transportando uma sobrevivente em estado grave. Uma sobrevivente? E Renato? Por que ninguém falava dele? A ideia começou a me sufocar. A minha tentativa de respirar ficava cada vez pior. Levei a mão para retirar a tala do meu pescoço, mas fui detida por uma mão forte. Comecei a me debater para me soltar. A dor na minha cintura era insuportável. Também sentia dores na cabeça e na perna esquerda, mas ainda
precisava de respostas.
                     _ Ela está entrando em choque. – disse uma voz grave
                     _ Segurem-na! – alguém gritou.
                     Luzes fortes, gente me olhando, maca, vozes, dor, tudo misturado. Alguém empurrava minha maca com velocidade pelos corredores do hospital. Eu via as luzes do teto passando rápido demais sobre mim. Queria gritar, saber onde ele estava, mas ninguém falava diretamente comigo.
                     Entrei numa sala muito clara e me passaram da maca para uma cama mais alta.
                     Alguém estava cortando minhas roupas. Minha perna doeu enquanto começaram a introduzir agulhas em mim. Me senti zonza, com os olhos pesando. Acho que estava desligando. Ouvi uma voz feminina “Vai ficar tudo bem, querida”. Então apaguei.
                     _V? – batidas na porta do banheiro me trouxeram de volta ao presente. –Virgínia? Está tudo bem, querida? – minha mãe perguntava preocupada do outro lado.
                     Não consegui responder. Apenas desliguei o chuveiro e fiquei em silêncio. Acho que ela percebeu, porque não perguntou de novo. Quanto tempo eu havia ficado ali?
                    Esperei para ter certeza de que minha mãe se fora e me enrolei na toalha saindo devagar para meu quarto, anestesiada com as lembranças. Sentei na cama e fiquei olhando o espaço vazio, onde antes estava o quadro.
                   _ Posso entrar? – minha mãe de novo.
                  _ Mãezinha... – reclamei – Eu tô me vestindo. – na verdade, era uma desculpa para ficar sozinha.
                  _ Eu posso ajudar você. – ela disse sem a menor cerimônia, entrando pelo quarto.
                 Eu estava sentada em minha cama, de toalha, com o cabelo escorrendo pelos ombros. Minha mãe pegou outra toalha e começou enxugar meus cabelos, enquanto falava.
                 _ Querida... – ela suspirou – Estamos muito felizes por você ter saído hoje. Sabemos o esforço que você tem feito para se reerguer. Isso é bom. – ela fez uma pausa enquanto enrolava a toalha nos meus cabelos. – Mas você precisa aprender que haverá dias bons e maus também. Você não precisa se apegar a nenhum deles, apenas vivê-los, um de cada vez. No dia bom, sorria, alegre-se, divirta-se conosco, com seus amigos... Seja feliz. Nos dias maus... – ela fechou os olhos apertando os lábios e fez uma pausa, buscando as palavras certas. – Bem, nos dias maus, chore também, mas não faça isso sozinha, escondida pela casa. Peça colo, querida, como você fazia quando era pequena. Corra para mim e para o seu pai. Você sabe que estamos aqui pra você...
                  Não consegui conter as lágrimas. Chorei baixinho no começo. Depois deitei a cabeça no colo de minha mãe e chorei muito, enquanto ela acariciava meus braços. 
                  Quanta dor eu ainda poderia sentir?
                 _ V! Nós o amávamos também, você sabe disso. Sofremos a ausência dele junto com todos os nossos amigos e familiares. Sabemos que pra você é muito pior, e respeitamos seus sentimentos, mas não podemos vê-la assim e continuarmos indiferentes. Você precisa reagir, filha. Não cobramos isso de você por acreditarmos que ainda era cedo, mas agora chegou o tempo de recomeçar.
                  Fiquei pensando quanto tempo ela havia ensaiado esse discurso. Lá no fundo eu queria brigar com ela. Eu não queria recomeçar nada! Eu nem queria ter sobrevivido ao acidente... Mas sabia que se dissesse isso a machucaria de uma forma desumana e desnecessária. Ela estava com a melhor das intenções tentando me ajudar. Em vez de brigar, enxuguei meu rosto na toalha que enrolava meu cabelo, levantei a cabeça e olhei em seus olhos.
                _ Mãezinha! Eu tenho tentado, mas é tudo muito difícil. Tudo me lembra ele. A igreja, os amigos, a faculdade... Tudo... Eu não consigo abrir os olhos de manhã sem pensar nele. – olhei para o vazio da parede e minha mãe acompanhou meu olhar. – É o primeiro pensamento do meu dia e o último da minha noite. Até nos meus sonhos ele está! Como eu faço para prosseguir? Como eu posso continuar sem ele? Eu não consigo contar o tempo para saber se já é hora de recomeçar, porque o tempo perdeu o significado para mim. Eu não tenho ideia de como fazer isso. O tempo, para mim, parou naquela noite. Ela fica voltando, e se repetindo na minha cabeça, e eu não consigo me desligar, nem me soltar daquele momento. Eu queria que fosse fácil para mim, mas não é. Eu queria poder diminuir a dor que eu sinto, mas não consigo, e não sei se isso será possível um dia. – as palavras iam saindo com força e eu já estava de pé no quarto andando de um lado para o outro enquanto falava. – Eu não queria envolver ninguém nisso, não queria deixar ninguém preocupado... – suspirei – Hoje nós saímos, e foi muito bom. Nós rimos, cantamos, mas, até quando estou “aparentemente” bem, eu me sinto culpada por... por... – as palavras não queriam sair. Eu me dei conta de que me sentia culpada por estar...viva! Sentei-me com o choque daquela descoberta.
                 Minha mãe caminhou até o outro lado do meu quarto, ajoelhou-se na minha frente, segurou minhas mãos e falou pausadamente.
                      _Querida Virgínia. Você se ouviu? – ela parou e olhou profundamente nos meus olhos – Você está se culpando por ter sobrevivido, filha? – ela afagava meu rosto. – É claro que você vai se lembrar dele, você o amava. Ele estará sempre presente para você e eu tenho certeza que se você se mudasse para outro planeta, e não tivesse nenhuma dessas coisas para lembrar, ainda assim, se lembraria dele, porque a memória dele não está nessas coisas, mas em você, – ela encostou a mão com suavidade no meu peito – no seu coração. Você acha mesmo, que se afastando de tudo isso, você vai esquecê-lo ou parar de sofrer? – ela parou um instante – Você já pensou se tivesse sido diferente? E se fosse o Renato que tivesse sobrevivido ao acidente?
               É claro que eu já havia pensado nisso várias e várias vezes, e nunca conseguia imaginar como ele reagiria.
               _Você gostaria de vê-lo sofrendo por tanto tempo? – minha mãe perguntou com uma voz mais firme agora.
                _ Claro que não!
               _ E como você acha que ele gostaria que você ficasse?
               _ Mãezinha, não é assim que as coisas...
              _ Responda, Virgínia. Como ele gostaria que você ficasse? – ela me interrompeu. Sua voz era mais dura agora.
                _ Ele gostaria que eu ficasse... – suspirei – Bem.
               _Você não pode fazer isso com você mesma, querida. Se não por nós que seja por ele, então.
              Minha mãe estava jogando sujo agora. Fiquei em silêncio por um tempo. Ela se levantou e foi até o guarda-roupa. Pegou um jeans e uma blusinha e atirou em cima da cama.
               _Você vai se atrasar para o culto. – ela disse sorrindo e saindo do meu quarto.
               Olhei a roupa por um tempo tentando digerir o que minha mãe dissera.
           Eu realmente me sentia culpada por ter sobrevivido. Aquilo era um absurdo! Eu não tinha agradecido a Deus nem uma única vez por ter saído viva daquele acidente.
             Lembrava de quando meus pais ou algum amigo fazia isso em suas orações e eu sequer dizia “amém”.
           Por um instante, senti o peso enorme da culpa, mas dessa vez por ingratidão a Deus. Como eu fui egoísta todo esse tempo! Como eu fui ingrata!
              Ajoelhei-me, ainda de toalha, à beira da cama, e comecei a orar. Senti-me envergonhada até para começar, então comecei daí mesmo:
            “_Senhor, sinto-me envergonhada diante de Ti. Eu realmente não sei o que dizer e preciso de ajuda. Não posso esconder do Senhor o que sinto. Andei longe de Ti por me sentir traída. Traída por ter sido tirada dos meus sonhos e planos. Por favor, perdoa-me a sinceridade, mas o que adiantaria pensar e não Te dizer? O Senhor conhece meu coração e sabe das palavras antes que elas me cheguem aos lábios. Eu preciso de ajuda para continuar, Senhor. Eu preciso que o Senhor me ensine a viver sem o Renato. Do mesmo jeito que me acostumei com a presença dele, preciso me acostumar a viver... sem ele. Eu sou grata pelo tempo que tivemos juntos, mesmo tendo sido tão curto para mim. Sou grata porque sei onde ele está agora, e sou grata pelo Teu livramento naquela noite. – silêncio. Meu corpo agora estava arqueado de tanta dor. Meus lábios travaram e eu não conseguia articular as palavras, apenas sussurrava para Deus entrecortando as palavras com soluços de desespero – Obrigada, Senhor. Mesmo eu tendo dificuldades em entender e até aceitar que o Senhor tenha me livrado, eu Te agradeço. Me perdoa por ter demorado tanto para entender. Perdoa-me por não ter visto o Teu amor naquela noite horrível. Perdoa-me por ter sido tão... tão... – a dor me invadiu impedindo-me de continuar. Não conseguia mais falar e nem pensar em nada. Meu choro agora era de um alívio profundo. Senti-me nos braços de Deus sendo acalmada por Ele mesmo. Deixei que meu coração terminasse a oração por mim. Chorei até não ter mais lágrimas para chorar. – Por favor, Senhor. Por favor. Não desista de mim. Por seu filho Jesus, meu salvador, Amém.”
                 Quando terminei sentia-me leve, embora meu rosto estivesse arruinado pelas lágrimas.
                 Eu nunca tinha deixado de ir à igreja nesse tempo. Assim que tive condições de sair de casa não faltei a um culto se quer, mas nem sempre meu coração ia comigo.
                Ficava distante e, às vezes, um pouco aborrecida. Não tinha orado nenhuma vez desse jeito ainda. Sempre me preocupava em ficar formal e inteira diante de Deus. Eu chorava, sim. Muito. Mas não conseguia expressar o que eu realmente sentia. Não sei bem se por medo de mostrar como eu estava por dentro, ou de admitir o que eu realmente pensava de tudo.
                Bobeira! De quem eu estava me escondendo? De Deus? Como posso me esconder de alguém que me conhece tão profundamente? Fiquei pensando como Deus me vira durante todo esse tempo. De novo me senti envergonhada. Deus nunca desistira de mim. Meu coração se encheu com esse pensamento.
                 Peguei a roupa que minha mãe havia separado, me vesti, arrumei meu cabelo, peguei minha Bíblia, minha bolsa e, antes de sair do quarto, dei uma olhada no espelho.
                 Meu rosto estava marcado pelas lágrimas. Havia manchas rosadas pelas bochechas e pela testa. Meus olhos estavam muito vermelhos, bem como meu nariz. Fiquei pensando o que meus pais diriam quando passasse pela sala. Fui ao banheiro, lavei o rosto e esperei um pouco na minha mesa. Resolvi olhar meus e-mails enquanto esperava o estrago passar.
                A internet tinha sido meu único contato com o mundo exterior por muito tempo.
                Logo que retornei do hospital, fiquei um mês sem sair de casa por causa de todos os ferimentos e parte desse tempo eu passava em meu quarto fuçando a internet.
            Eu até lia os e-mails, mas não respondia a todos como deveria. A maioria era para me dar os pêsames, ou para dizer coisas que, com certeza, eram para fazer com que eu me sentisse melhor. Eu tinha uma resposta pronta, que copiava e colava na maioria deles. “Obrigada por suas orações e pelo carinho”. Era o máximo que eu conseguia naquela época. Confesso que alguns eu nem lia até o final. Não por falta de
consideração, embora realmente fosse, mas por falta de forças. Naqueles em que as pessoas começavam a descrevê-lo com detalhes, eu desistia. Não iria suportar aquilo.
            Doíam demais as minhas próprias lembranças, como iria suportar as lembranças dos outros também?
Quando abri, minha caixa de entrada estava cheia. A maioria publicidade.
             Tinham alguns e-mails da faculdade, algumas mensagens do Orkut, mas um e-mail, em especial, me chamou a atenção. Era de Margarida, mãe de Renato.
              Fiquei com a setinha do mouse lá em cima por um tempo pensando se deveria ou não abrir. Fazia muito tempo que eu a evitava. Durante todo esse tempo nos vimos poucas vezes. Ela fora me ver no hospital e veio aqui em casa quando eu tive alta.
            Depois disso, ela me ligava algumas vezes, mas sempre fui muito rápida ao telefone com ela. A dor dela ecoava na minha e tornava tudo mais difícil e muito, muito doloroso.
             Cliquei na mensagem. Era um texto curto que eu li com cautela, esperando a dor.

            “Querida V,
                       sei que não temos nos falado muito ultimamente. Não pense que é por ter me esquecido de você. De modo algum. É que percebo que você sofre quando eu a procuro, então decidi esperar até você sentir-se mais forte.
              Sinta-se à vontade para recusar meu convite. Não quero obrigá-la a nada, por favor. Mas gostaria muito que você viesse aqui em casa no próximo final de semana.
                Gostaria de conversar com você. Sinta-se à vontade para trazer alguns amigos, se preferir. Terei prazer em recebê-los também. Por favor, querida. de novo, não se sinta obrigada a vir, mas saiba que eu ficaria muito feliz.
                     Um beijo.
                              Margarida”

                Li novamente para tentar absorver a mensagem. Como eu faria aquilo? Como eu voltaria à casa da mãe dele? Nem ao apartamento dele eu tive coragem de voltar.
              Quando Arthur veio para separar algumas coisas, sugeriu que eu fosse com ele, mas eu fingi não entender. Ele percebeu, não tocando mais no assunto.
              Margarida morava em uma fazenda em Mimoso de Goiás, com Arthur, irmão de Renato, e a família dele. Nós íamos lá com frequência. Renato sentia falta das sobrinhas, e não gostava de ficar muito tempo longe da mãe e do irmão. Com a morte do pai, quando Renato ainda era criança, a família ficou muito unida. Arthur era mais velho que Renato e, assim que teve idade, tomou para si as responsabilidades da família.
          Administrava a fazenda e cuidava de tudo. Renato era mais desligado dessas coisas de administração. Veio para Brasília estudar veterinária. Amava os bichos. Quando se formou, ficou em Brasília mesmo, trabalhando no IBAMA, mas voltava, sempre que podia, à fazenda.
               Li novamente o e-mail e cliquei em responder.
            “Querida Margarida,...” O cursor ficou piscando ao lado do nome dela. O que eu diria? Eu estava em débito com ela. Com eles. Eu precisava ir até lá, enfrentar meus medos e pesadelos. Não poderia riscá-los da minha vida com o pretexto de me proteger.
             Era cruel demais. Eu iria até lá. Não sei como ficaria depois, mas eu precisava fazer isso. Eu devia isso a eles. Eu devia isso... a ele.

             “Querida Margarida,
                              Perdoe-me a ausência prolongada. Acho que só agora estou voltando à realidade. Claro que aceito seu convite. Terei muito prazer em ficar com vocês no próximo final de semana. Acho que irei com a Flavinha. Vou confirmar com ela primeiro mas, de qualquer forma, semana que vem estarei aí.
                                       Beijos.
                                               V”

                Respirei fundo. Cliquei em “enviar” e saí do quarto sem me olhar no espelho.
               Imaginei que meu rosto não estaria completamente normal, mas ultimamente eu nem sabia o que era normalidade.
                 Meus pais estavam sentados na sala, com a TV ligada. Minha mãe tricotava alguma coisa e meu pai prestava atenção no jogo.
              _ Já vai, filhinha? – meu pai falou num tom casual.
              _ Já, paizinho. Daqui a pouco estarei de volta, tá? – cruzei a sala para dar um beijo nele.
              _ Sem pressa, meu bem.
              Beijei minha mãe também, que sorriu um sorriso de aprovação, e saí pela porta.
              Dessa vez eu saí com vontade de sair. Sentia-me mais forte ou, quem sabe, um pouco menos fraca. Era a primeira vez que estava “me sentido”. Tinha consciência dos meus passos, do caminho que eu percorria, da estrada, dos meus pensamentos... Depois de tanto tempo, estava consciente de novo.
               No caminho fui pensando o quanto eu tinha avançado e crescido no dia de hoje.
               Parecia mesmo que minha vida voltava ao normal aos poucos. Me lembrei do que minha mãe havia dito no quarto hoje à tarde. “Você precisa aprender que haverá dias bons e maus também. Você não precisa se apegar a nenhum deles, apenas vivê-los, um de cada vez.” Era isso que eu faria. Viveria um dia de cada vez.