quarta-feira, 16 de março de 2011

Capítulo 03 - De Volta à realidade

 Capítulo 03

De volta à realidade

Soprei o estojo empoeirado do meu violino. Há quanto tempo ele estava no porão? Peguei um pano seco e limpei-o antes de abri-lo. Suspirei profundamente enquanto acariciava a superfície do estojo, lembrando-me do dia que o ganhei de meus pais... No natal de 1996, havia um pacote enorme embaixo da nossa árvore. Eu nunca imaginaria que fosse meu violino!
     Eu tinha doze anos e já tocava desde os nove. Apaixonei-me pelo instrumento quando fui com meus pais a um casamento de uns amigos deles. Fiquei fascinada com o som tão doce e hipnotizante. Ainda durante a cerimônia eu fiz meu pai prometer que me levaria a uma escola para aprender a tocar violino. Eu aprendi rápido e, cada vez que aprendia, mais eu queria aprender. Usava o instrumento do conservatório de música que eles emprestavam aos alunos mais aplicados, e nunca me importei muito com isso, embora sonhasse em ter o meu próprio violino. Apesar de ser filha única, meus pais não me mimaram como a maioria teria feito. Eu tinha limites como qualquer outra criança de família grande. Era disciplinada quando era necessário, ficava de castigo quando pisava na bola... Graças a Deus meus pais me educaram segundo a Bíblia ensinava e isso, hoje, me evita uma enorme gama de problemas.
     Abri o estojo devagar e retirei o instrumento com um cuidado excessivo. O cheiro dele era fantástico! Levei-o bem perto do rosto para sorver aquele aroma de madeira. Que saudade... Segurei-o contra o peito e dei um abraço nele. Parecia bobo, mas eu realmente sentia saudades do meu violino. Coloquei-o em posição, peguei meu arco e toquei uma nota. Estava desafinado, é claro. Levei um tempo afinando, prestando atenção às nuances de cada nota. Comecei a tocar uma música que sabia de cor e que sempre me enchia o coração “Mais perto quero estar”, um antigo hino da Harpa Cristã que ficou famoso por causa filme Titanic.
     Toquei cada nota com os olhos fechados, deliciando-me com a melodia. Como era bom ouvir de novo o doce som do meu violino! Era algo que sempre me acalmava independente da situação, pelo menos havia sido assim até o acidente. Depois daquela noite eu me afastei de qualquer coisa que me ligasse à realidade.        Era como uma negação a mim mesma.
     Toquei até último acorde, mas mantive os olhos fechados quando terminei tentando prolongar aquele momento. Quando abri os olhos, minha mãe estava de pé, apertando o pano de prato entre as mãos e com o rosto coberto de lágrimas. Ela correu para mim e me abraçou apertado.
     _V! – ela disse em meio às lágrimas. – Que coisa mais linda, filha!
     _Obrigada, mãezinha! – falei baixinho, com um sorriso nos lábios.
     _ Eu pensei que você não tocaria nunca mais.
    _ Eu também. – sussurrei. Ficamos abraçadas até minha mãe achar suficiente. Ela me soltou devagar, segurando meu rosto entre as mãos. Beijou minha testa e voltou para a escada. Eu continuei de pé pensando no quanto eu era grata por essa família. Por essa família aqui e por minha outra família, em Mimoso de Goiás. Lembrei do final de semana que havia passado com Margarida, Arthur, Érica e as meninas. Já havia se passado um mês desde a minha visita, e trocávamos e-mails frequentes. Eles estavam planejando vir para minha formatura.
     Meu último semestre estava exigindo muito de mim. Havia um monte de trabalhos e provas a serem feitos e ainda meu Trabalho de Conclusão de Curso. Eu já estava bem adiantada com tudo, mas ainda assim havia muitas outras coisas a serem feitas. Isso era bom porque me mantinha ocupada quase que todo o tempo.
     No meu período de “ausência do mundo”, a única coisa que me fazia parecer normal era a faculdade.   Mesmo como um zumbi, eu jamais atrasei um trabalho ou faltei a alguma aula, depois que tive permissão médica para voltar. No meu período de internação, tanto no hospital quanto em casa, tive acompanhamento da faculdade para não ficar muito atrasada, e agora eu estava até um pouco adiantada em relação a alguns colegas da minha turma.
     Na igreja, eu retornava aos poucos à normalidade. Ainda não me achava pronta para retornar à equipe de louvor, mas já ajudava nos ensaios. O pastor Jonas, que era líder do grupo, havia me deixado à vontade para voltar quando me sentisse preparada. Ultimamente eu sentia que esse dia estava muito, muito próximo. Nunca fui de ficar sentada sem fazer nada. Eu sabia que, definitivamente, meu ministério não era polir o banco da igreja com minha calça jeans. Talvez eu falasse com o pastor Jonas neste final de semana...
Peguei meu violino e fui em direção ao meu quarto para guardá-lo no lugar que era dele: ao lado da minha cama.
Meu pai estava trabalhando e minha mãe preparava o almoço. Eu só teria aula à tarde, mas acordei cedo para adiantar alguns trabalhos.
Passei pela cozinha, peguei uma pera na fruteira e beijei minha mãe enquanto passava. Ela se virou e sorriu.
_ Que cheirinho bom! – elogiei – O que é?
_ Fricassê de frango. Seu pai adora! – ela sorriu.
_ Eu também adoro! – reclamei sorrindo.
Meu pai já deveria estar chegando, então fui logo guardar meu violino. Aproveitei para checar meus e-mails. Nada de novo. Estava separando o material para a aula de hoje e me virei para pegar um livro que havia deixado em cima da cômoda.
Parei de frente para o quadro na parede. Eu finalmente havia criado coragem para recolocá-lo em seu devido lugar.
Era um quadro simples com um fundo terra-cota e algumas figuras geométricas multicoloridas que não seguiam nenhum padrão específico, apenas as cores quentes que se misturavam. Não era o meu melhor quadro, mas era o meu preferido. O que o tornava tão especial para mim era a palma de uma mão totalmente alaranjada, que ficava no canto superior esquerdo. Era a palma da mão de Renato. Lembro-me exatamente do dia em que ele fez isso.
Estávamos no porão de casa e eu tinha esse quadro para entregar na próxima aula. Estava completamente sem inspiração, “pintando por pintar”, e isso me deixava irritada, mas como precisava de nota naquela matéria, decidi que a inspiração não era realmente necessária naquela ocasião.
_ Tá horrível! – ele sorriu sem o menor constrangimento.
_ Cale a boca, Renato! – rosnei para ele – Me mostra seu diploma de Artes que eu aceito a sua crítica. – falei irritada.
_ Não preciso sequer colocar o pé em uma faculdade de Artes para saber que esse seu quadro é uma droga. – ele estava se divertindo com minha irritação.
_Arrhhh! – trinquei os dentes com raiva. Depois suspirei, derrotada, e sentei num banquinho. Ele realmente tinha razão – Tá uma porcaria, né?
_ Você já fez coisas melhores. – ele falou caminhando na minha direção e me abraçando por trás colocando o queixo na minha cabeça.
_ Eu tô péssima para pintura hoje! Meu lado criativo está dormindo, ou saiu para fazer compras, sei lá! O que eu faço? – levantei os olhos para ele num pedido claro de ajuda.
_Humm! – ele falou andando até o quadro com a mão no queixo no melhor estilo “crítico de arte”.
_ Joga fora! – ele soltou uma gargalhada.
Eu corri para ele com o pincel na mão e rabisquei aonde eu consegui alcançar. No rosto, nos braços, na camisa... Ele ficou cheio de traços de tinta amarela.
Então ele foi até a mesa onde estavam minhas tintas, pegou um potinho de tinta alaranjada e despejou num prato que eu usava para misturar as cores. Mergulhou a mão esquerda na tinta e caminhou na minha direção com um olhar de ameaça.
_ Vamos ver como fica essa carinha linda toda pintada de laranja. – ele falou enquanto caminhava lentamente em minha direção, bloqueando a passagem para a escada que dava em direção à cozinha.
_ Você não se atreveria, Renato Vicente. – eu falei no mesmo tom de ameaça que ele usava.
_ Vou te mostrar como fazer para sua obra ganhar vida. – ele falava enquanto continuava me cercando devagar. Apenas a mesa de tintas nos separava.
_ Você deveria usar seu talento para me ajudar com meu quadro. – eu falei apertando os olhos e medindo a distância até a escada. Será que eu conseguiria fugir para a cozinha?
_ Seu quadro não tem salvação. Mas eu tenho uma boa ideia de como ficará o meu quadro: “Virgínia, uma leitura em laranja” – ele falava mantendo a voz baixa e a postura atenta aos meus movimentos.
Eu disparei em direção à escada sem pensar, mas ele me pegou antes que eu conseguisse alcançar o outro lado da mesa. Estávamos gargalhando enquanto ele me fechava nos braços com cuidado.
_ Por favor, por favor... – eu pedi baixinho com os olhos apertados.
_ Tá com medo de mim ou da tinta? – ele sorriu
_ Dos dois! Por favor, não faça isso! – abri os olhos, com cara de súplica.
_ Tá jogando sujo. – ele riu da minha expressão.
_ Por favor? – pedi de novo com a voz mais baixa e levantando o rosto para beijá-lo.
_ Ah! Tá mesmo jogando muito, muito sujo. – ele sorriu e curvou a cabeça para me beijar. Ainda estávamos nos beijando quando senti a mão molhada dele no meu rosto. Tentei me afastar, mas ele segurou forte minha cabeça com a outra mão e manteve o beijo, sorrindo. Ficamos os dois com o rosto alaranjado. Ele diminui a pressão da mão e eu me afastei, mas mantive os braços ao seu redor.
_ E então? O que acha do seu quadro? – perguntei sorrindo
_ Hummm! – ele disse virando a cabeça de lado e avaliando meu rosto. Com a ponta do dedo indicador ele traçou uma linha na minha testa. – Pronto! Agora sim está perfeito. Ele se inclinou para me beijar novamente.
_ Você é malvado! – eu sorri me afastando e tropeçando no cavalete que sustentava meu quadro horroroso. Por reflexo ele estendeu a mão esquerda para pegá-lo, mas marcou o canto da tela com a tinta alaranjada de sua mão.
_V.! Desculpa! – ele disse sinceramente preocupado – Eu não queria estragar seu quadro. Tem como arrumar isso? Diz que “sim”, por favor. – ele continuou enquanto recolocava o quadro no cavalete. Eu parei olhando para a marca das pontas dos dedos dele no canto da tela. Dei um passo para trás e fiquei analisando. De repente minha inspiração voltou das compras!
Sem dizer nada, eu peguei o prato que ele havia derramado a tinta e mergulhei a mão dele novamente.
_ O que você está fazendo? – ele perguntou sem resistir. Retirei o excesso de tinta e pousei a mão dele toda na tela fazendo com que a palma escondesse a marca dos dedos. Pressionei um pouco minha mão sobre a dele e retirei com cuidado. Pronto! Meu quadro estava salvo!
_ Ficou legal, V! – ele sorriu surpreso. A mão dele destacou-se no quadro de cores quentes e realmente criou um efeito muito bom. Não era nada de extraordinário, mas pelo menos agora tinha um “algo a mais” de que eu gostava.
Quando entramos na cozinha, sujos de tinta, minha mãe nos olhou boquiaberta.
_ Parece que estavam no jardim de infância! O que aconteceu lá embaixo?
_ Sua filha estava me dando aulas de pintura, Dona Rute. Só que eu não sou um bom aluno. – ele disse segurando minha mão e sorrindo.
Não foi minha melhor nota naquela matéria, mas eu consegui os pontos de que eu precisava.
Sentei na cama e sorri dessa lembrança. Suspirei de saudade, mas não doeu daquele jeito que sempre doía. Pelo menos não a dor aguda e sufocante que já estava acostumada a esperar sempre que uma de minhas memórias vazava do meu cofre de proteção máxima. Agora era uma saudade boa e não aquela que destrói a gente de dentro para fora. Fechei os olhos e agradeci a Deus em voz alta.
Finalmente eu estava experimentando a sensação de lembrar-me de Renato sem sentir aquela dor que me fazia arquear sobre o meu próprio peito. Uma dor inexplicavelmente aguda que irradiava de algum lugar do centro do meu peito para o restante do corpo. Era uma dor física, ou pelo menos era assim que parecia para mim.
Não era aquele tipo de dor que eu sentia nos últimos meses. Era uma dor amena, uma saudade perene que embora estivesse sempre presente, não me impedia de sorrir, de brincar, de estar com as outras pessoas... Eu agora conseguia falar sobre ele, pensar nele, sem me machucar tanto. Confesso que esse ainda não era meu assunto preferido, tinha medo de não saber até onde eu conseguiria manter minha mente sob controle ou meu coração inteiro. Tudo ainda era muito frágil, como uma ferida recém fechada, que ainda tomamos todo o cuidado por não termos certeza de que a cicatrização foi completa. Mas estava mais fortalecida, e sabia que isso não vinha de mim mesma. Deus tinha um papel primordial em minha recuperação. Na verdade, diria que Deus era totalmente a minha recuperação. Sem Ele, eu tinha absoluta, plena e completa certeza, de que não conseguiria me levantar da cama de manhã. Ele era a minha força, meu socorro e meu refúgio, e eu estava, realmente, me permitindo ser consolada por Ele. Sentia-me muito próxima de Deus agora, e isso me aliviava o coração.

O resto da semana passou muito rápido e o sábado amanheceu ensolarado como quase todo dia do mês de abril em Brasília. Os gramados conservavam o verde das chuvas de março, os jardins estavam floridos, e o céu era de um azul profundo. Athos Bulcão, um mestre das artes, certa vez disse que “O céu era o mar de Brasília”. Só quem já teve o privilégio de ver o céu de abril na Capital Federal é que pode entender as palavras do mestre. Conseguíamos ver o céu de um lado a outro, sem interrupções. A geografia de Brasília permite um horizonte completamente alinhado, como o mar das cidades litorâneas. É uma visão fantástica! O pôr-do-sol, nessa época, é tingindo com tons de rosa e laranja, que é de tirar o fôlego! Gosto de pensar que, ao entardecer, o próprio Deus vem, pessoalmente, colorir o céu de Brasília, tamanhos os detalhes e a exuberância das cores.
Abri minha janela inteira para deixar o sol e o colorido da manhã entrar no quarto. Aspirei o ar quente que entrava pela janela, arrastei uma cadeira para o raio de sol que inundava o quarto e sentei-me para ler a Bíblia e orar. Fiquei um bom tempo ali, a sós com Deus. Quando terminei, já estava resolvida e sabia exatamente o que deveria fazer.
Entrei na cozinha para o café da manhã com disposição e bom humor. Meus pais já estavam sentados.
_V, você esta com uma cara ótima! – meu pai falou enquanto eu beijava sua cabeça com os cabelos rareando.
_ Bom dia, paizinho! Tô mesmo muito feliz hoje.
_ O que aconteceu? – minha mãe disse estendendo a mão para segurar meu rosto enquanto eu me curvava para beijá-la.
_ Bom dia, mãezinha! É que eu decidi voltar para a equipe de louvor definitivamente. – falei sorrindo.
Minha mãe bateu palmas de alegria e sorriu para o meu pai que estava igualmente satisfeito.
Eles eram meus maiores incentivadores. Iam aos meus recitais de violino, às minhas exposições da faculdade, às apresentações do grupo da igreja nas praças, orfanatos e asilos. Sempre que podiam estavam lá. Quando decidi sair da equipe de louvor, eles tentaram me dissuadir da ideia, mas sem me pressionar a nada que fosse difícil demais para mim. Eles respeitavam minhas decisões. Meu pai costumava dizer que havia me criado para que eu tivesse maturidade e discernimento para tomar minhas próprias decisões, e que confiava não em mim, mas no Deus que eu servia, e Ele mesmo me daria o direcionamento certo.
Isso sempre me trouxe uma dose extra de temor e responsabilidade. Ficava me perguntando se isso fazia parte da didática deles na minha educação.
Fui criada debaixo dos ensinamentos bíblicos. Cercada de muito amor, compreensão, carinho e muitos valores cristãos.
Tomamos café juntos, e meus pais saíram para fazer compras na feira. Era um hábito antigo que eu já estava acostumada. Eles amavam esse programa de sábado de manhã. Às vezes eu ia junto, mas eu sabia que eles gostavam de ir sozinhos para andar e namorar. Meus pais eram muito carinhosos um com o outro. Isso sempre foi natural para mim.
Lavei a louça do café e voltei para o meu quarto. Queria organizar algumas roupas e calçados para a doação. Quase precisei “desmontar” meu guarda-roupa e minha cômoda. Aproveitei para dobrar e arrumar tudo. No final, havia juntado três sacolas grandes de roupas e sapatos. Os jovens iriam fazer uma tarde de louvor em uma instituição que cuidava de ex-viciados e moradores de rua. O pastor Jonas estava organizando um culto nesta instituição, e a responsabilidade era do grupo de jovens. Levei tudo para garagem e coloquei no bagageiro do carro.
Resolvi preparar uma lasanha de frango para os meus pais. Separei tudo sobre a mesa da cozinha e comecei a picar os ingredientes. Fiz tudo rapidinho! O cheiro estava muito bom. Deixei um bilhetinho em cima da mesa que estava preparada para os dois.

Meus amores,
Fiz uma Lasanha para vocês. Está no forno. Hoje é o dia da visita àquela instituição que lhes falei. Saí mais cedo, pois quero conversar sobre o meu retorno à equipe de louvor com o pastor Jonas. De lá, vamos direto para o encontro de jovens. A Flavinha virá dormir conosco hoje, lembram?
Amo vocês!
V.”
Eu não iria almoçar com eles. Comeria alguma coisa na igreja mesmo. Tomei banho e coloquei calça jeans, camiseta e tênis. Como passaria o dia fora queria estar o mais confortável possível, mesmo porque, a orientação que recebíamos era que, em dias como esses, deveríamos nos vestir com simplicidade para não constranger as pessoas, muito embora esse tipo de instrução não servisse muito para mim. Eu não tinha o hábito de me produzir. Meu guarda-roupa era basicamente composto de Jeans e camisetas. Minha mãe comprava algumas blusinhas e vestidos de verão que eu usava muito pouco; mais para agradá-la do que para qualquer outra coisa. Olhei meu violão, que havia resgatado da faxina, e decidi levá-lo caso o pastor quisesse que eu tocasse hoje ainda.

A conversa com o pastor foi bem rápida e descomplicada. Mais rápida do que eu havia imaginado. Ele ficou feliz com meu retorno e nós oramos juntos.
     Quando o pessoal chegou e soube da novidade, ficaram felizes comigo. O grupo não era tão grande. Éramos quinze pessoas e minha saída sobrecarregou Bernardo e Dudu, que eram com quem eu dividia a responsabilidade de tocar violão. Participei do ensaio, mas não iria tocar hoje.
     Saímos para a instituição às três horas da tarde. Estávamos muito animados com as possibilidades. Nosso grupo gostava dessas “atividades de campo”.
     O culto foi muito bom. Cantamos, o pastor pregou, e nós servimos lanches para todos. Percebi que um rapazinho de, no máximo, quatorze anos, estava muito interessado no violão de Bernardo. Ele ficava por perto, olhando, rodeando... O garoto parecia hipnotizado. Lembrei de mim mesma quando cruzei a primeira vez com o violino. Fui até o carro e peguei meu violão também. Sentei-me próxima aos dois e começamos a tocar.
    O rapazinho chamava-se Rafael, era um morador de rua. Entreguei meu violão para ele, enquanto Bernardo ensinava-lhe algumas notas simples. Ele estava maravilhado.
      Fiquei sentada ali apreciando o entusiasmo de Rafael com a novidade que se abria diante dele. Bernardo era muito paciente e um ótimo professor. Ele já fazia um trabalho assim com crianças carentes. Todo sábado de manhã ele ia à uma escola da periferia da cidade para ensinar. Era um trabalho difícil porque a maioria das crianças não tinha o instrumento e ficavam revezando entre elas. Também não podiam ensaiar durante a semana, o que dificultava muito o aprendizado. Ele continuava tentando um patrocínio para o projeto, mas não tivera muito sucesso até ali.
     Saímos de lá cheios de desafios e sonhos para o futuro. Fomos direto para nossa reunião de jovens na igreja. Estávamos muito entusiasmados e cheios de experiências para compartilhar.
     Foi um culto bem diferente do tradicional. Ficamos sentados no chão e cada um podia falar sobre o que aprendera durante aquela tarde. Ouvi tanta coisa linda! Algumas me deixaram emocionada, outras me fizeram sorrir. Como a que o Dudu compartilhou conosco. Ele havia passado uma grande parte da tarde explicando sobre Jesus a uma senhora que parecia não estar muito interessada em conversas. Ele insistiu, segundo ele mesmo “porque haveria alguma coisa naquela história que a faria ficar interessada” Ele continuou bravamente até que uma pessoa da instituição veio até ele e explicou que aquela senhora era surda. Nem preciso dizer o quanto nós rimos. Dudu era a figura mais engraçada que eu conhecia. Se alguma coisa louca iria acontecer, seria com o Dudu. Eu não conseguia acreditar no número absurdo de mancadas em que ele se metia. Os testemunhos continuaram e um após outro dividiam suas experiências. Mas a que mais me impressionou foi a de Bernardo. Ele ainda segurava o violão quando começou a falar com sua voz suave e inconfundível.
     _ Hoje me senti impotente. – ele suspirou – Aquele rapaz que estava comigo, tem treze anos de idade e é viciado desde os dez. Teve experiências com mais coisas nesse curto espaço de tempo, do que eu nos meus vinte e três anos. – ele baixou os olhos – Fiquei chocado com a maioria das coisas que ele me contou. Mas o que mais me chocou foi vê-lo como a criança que ele é. O jeito que ele me cercou por causa do violão, a forma simples como ele aprendia o que eu ensinava... Nada daquilo combinava com as coisas horríveis que ele havia me contado... – Bernardo parecia se controlar para não chorar. – Eu não pude deixar de pensar no meu ministério com as crianças. Todo mundo sabe como eu venho tentando conseguir violões para esse projeto e como eu venho dando de cara com portas e mais portas fechadas. – ele suspirou – Me senti impotente, pequeno e sem forças. Seria mais uma criança que eu tentaria ajudar, sem muito sucesso... – ele parou de novo. Desta vez o silêncio foi mais demorado. – Mas Deus falou comigo. Eu quero cantar a música que Deus me deu hoje à tarde.
     Ele começou a tocar “Não Temas”, do André Valadão, com sua voz doce enchendo a sala.

Quando estou pronto a desistir
Pensando que cheguei ao fim
A Tua mão me sustenta, – a voz de Bernardo ficou trêmula –
A Tua voz me...”

     Ele não conseguiu continuar. Abaixou a cabeça e continuou tocando. Suas lágrimas corriam pelo rosto.  Dudu, que estava ao seu lado, afagou suas costas e continuou a música de onde ele havia parado. Cantamos juntos, igualmente emocionados.
     De todos nós, Bernardo talvez fosse o mais sensível a questões sociais. Estudante de medicina, ele sempre organizava grupos de ajuda quando ocorriam catástrofes pelo Brasil e pelo mundo. Já havia feito algumas viagens de socorro a vítimas de tragédias, sempre como voluntário. Era um rapaz meigo e até um pouco acanhado, mas extremamente ativo e dedicado. Vê-lo dando aulas, dirigindo o louvor na igreja ou mesmo dando testemunho em público era algo que ia contra a sua natureza tímida. Ele lutava contra isso, porque queria exercer seu ministério plenamente. Quem o visse em outro ambiente, jamais o imaginaria diante de tantas pessoas falando de forma tão articulada e desembaraçada. Ele mesmo dizia que era Deus, porque se dependesse dele, ficaria num canto completamente vermelho até todos pararem de olhá-lo. Talvez por causa do violão, ou pela timidez de Bernardo, nós éramos muito amigos. Era simples e gostoso conversar com ele. Tínhamos os mesmos gostos para música e a mesma visão quanto à ação social, embora ele tivesse o coração mais apaixonado que o meu.
     Enquanto ele cantava, procurei Flavinha. Ela iria dormir lá em casa hoje. Os pais dela estavam viajando e ela, filha única como eu, não queria ficar sozinha.
     Ela estava do outro lado do círculo de frente para Bernardo. Percebi um brilho diferente em seus olhos, e até acho que a vi suspirar, mas não tive certeza. Flavinha estava interessada em Bernardo? Olhei para ele de novo. Ele era um rapaz bonito. Tinha os cabelos castanhos, era alto e esguio. Não fazia o tipo magricela, nem musculoso. Era algo entre os dois. Vestia-se com simplicidade, e era de uma meiguice que encantava. Mas o que mais chamava a atenção em Bernardo era seu caráter e seu amor pelos outros. Isso era inegável!
    Olhei de novo para Flavinha e ela estava hipnotizada. Mas quando foi que isso aconteceu que eu não havia percebido? A resposta foi imediata. “Enquanto você surtava...”
Meu Deus! Há quanto tempo minha amiga estava assim? Será mesmo que minhas suspeitas se confirmariam? Como eu estava sendo uma péssima amiga para minha melhor amiga!
Decidi que ficaria disponível para ela. Se quisesse me contar alguma coisa, eu estaria ali para ouvir. Quem sabe hoje à noite lá em casa?

Já estávamos deitadas no escuro do meu quarto. Eu na minha cama e Flavinha na cama auxiliar. Eu ficava pensando se havia imaginado aquelas coisas com relação a Bernardo. Será que Flavinha estava mesmo interessada nele? E se estivesse? Por que não falava nada comigo? A não ser que... Flavinha estava me poupando! A surpresa daquela revelação tomou conta de mim. Até onde iria a generosidade dessa amiga querida? Há quanto tempo ela deveria estar guardando isso só para ela? Fechei os olhos, me sentindo o mais culpada e horrível que um ser humano poderia se sentir. Eu era uma amiga odiosa!
     Suspirei e fiquei tentando encontrar o melhor jeito de começar o assunto. Eu não iria obrigá-la a me contar, mas deixaria claro que ela não precisaria filtrar nenhum tipo de assunto comigo.
     _ Flavinha? Já dormiu? – comecei timidamente
     _ Não!
     _ Estava pensando na nossa tarde lá na instituição. Foi legal!
     _ Muito! – ela disse com a voz carregada de sentimento.
     _ De quantas formas podemos ser abençoados quando nos damos a outras pessoas, né?
     _ É verdade!
     _ Flavinha?
     _ Oi.
     Ela estava monossilábica hoje. Precisava partir para uma abordagem mais explícita.
     _ Eu estava pensando em Bernardo. – fiz uma pausa de propósito para avaliar sua reação. Pude sentir que ela ficou dura na cama, mas como estávamos protegidas pela escuridão do meu quarto não podia ter certeza, então continuei.
    _ Fiquei impressionada com o testemunho dele. – falei com um tom mais despreocupado que pude encontrar. Mesmo assim soava muito artificial. Flavinha continuava muda. Parecia congelada na cama.
     _ Flavinha?
     _ Oi. – a voz tensa.
     _ Pensei que você tivesse dormindo
     _ Não. – a voz mais tensa ainda
     _ Então... Eu estava falando do Bernardo...
     _ Tá bom, V! Pode parar! – ela me interrompeu bruscamente sentando na cama com a voz nervosa.
Arah! Consegui! Fiz silêncio e continuei deitada esperando o restante da reação dela, mas não houve. Ela continuou sentada na cama. Suspirou, imagino, buscando forças para começar a história, então começou a falar de forma atropelada.
    _ Foi na nossa viagem de socorro às vitimas da enchente em Minas Gerais. Fomos num grupo de oito pessoas. Bernardo, Dudu, Luiza, Celinha, Beto, Ritinha, Dr. Henrique e eu. Você ainda estava... Bem. Ficamos lá por dez dias. Arrecadamos muitos donativos aqui e nos unimos à cruz vermelha de lá para ajudar a separar tudo. O Dr. Henrique ajudava no socorro aos doentes. Ritinha, Luiza e Dudu ficaram com ele para ajudá-lo. Bernardo, Beto, Celinha e eu ficamos na frente de apoio que ajudava no socorro às pessoas na cidade. Fiquei mais perto dele e pude conhecê-lo melhor. A forma como ele se dá ao trabalho, como ele é envolvido com Deus... – ela arfou e caiu na cama colocando o travesseiro no rosto. – Ai V, foi natural, entende? Eu não percebi até que comecei a procurar por ele, a querer saber onde ele estava... me sentia tranquila quando estava com ele e agitada se estávamos em grupos diferentes... – ela falava ainda com o travesseiro no rosto e eu não conseguia entender direito tudo o que ela dizia, mas não o retirei. Se ela precisava dessa máscara, além do escuro do meu quarto, para falar nesse assunto, eu não iria interrompê-la.      – Quando dei por mim, estava apaixonada por ele. – essa última parte foi quase um sussurro.
     Ficamos as duas em silêncio, ela ainda com o travesseiro no rosto. Curvei-me em sua direção e puxei o travesseiro com cuidado. Ela não resistiu.
    _ Amiga... Eu sinto muito você ter levado isso sozinha esse tempo todo. Eu não fui uma boa amiga para você. – suspirei.
     _ Eu sei como você estava, V. Não havia Virgínia suficiente para nós duas.
     _ Mas isso agora não é sobre mim. Vamos orar por isso e pedir uma orientação de Deus. – fiz uma pausa      – Você falou com mais alguém?
    _ De jeito nenhum! – ela disse horrorizada.
    _ Então não sabe como ele se sente?
     _ Isso eu posso deduzir sozinha. Ele não demonstra o menor interesse por mim. Sou invisível para ele.
    _ Não é verdade, Flavinha.
   _ Tá bom. Então deixe-me corrigir. Sou invisível para ele da forma como eu gostaria que ele me enxergasse.
     _ O Bernardo é muito tímido. Você acha que ele daria alguma bandeira?
Ela ficou pensativa.
    _ Além do mais – continuei – nunca vimos o Bernardo namorando ninguém para saber como ele reage a essas coisas.
     _ Isso não quer dizer nada, V. A gente sabe se uma pessoa está ou não interessada na gente.
     _ Calma, amiga. Vamos orar por isso, e tenho certeza de que Deus nos dará a resposta.
     Conversamos mais um pouco sobre como ela se sentia e sobre suas impressões quanto aos sentimentos de Bernardo. Ela parecia irredutível quanto à certeza de que Bernardo era completamente cego em relação a ela. Infelizmente eu não pude opinar muito, porque só havia percebido alguma coisa essa noite – meu estado quase catatônico dos últimos meses me impedia de perceber qualquer coisa – mas me dispus a prestar mais atenção no futuro.
     Sentamos na cama, uma de frente para outra, nos demos as mãos e começamos a orar.
     “Querido Deus, é tão bom termos livre acesso ao Senhor a qualquer hora e em qualquer lugar para falarmos sobre qualquer assunto... Estamos confusas com relação a esses sentimentos. Queremos pedir que o Senhor fale ao nosso coração, principalmente ao de Flavinha, sobre como resolver tudo isso. Precisamos saber do Senhor se o Bernardo é o namorado que o Senhor tem preparado para Flavinha... Precisamos que o Senhor nos diga. Dá-nos paciência para aguardar Tua resposta. Esperamos em Ti. Em nome de Jesus. Amém”.
     Sorrimos uma para outra e continuamos a falar sobre vários assuntos. Agora Bernardo aparecia na maioria deles. Flavinha parecia mais aliviada em não termos mais segredos e, de vez em quando, ela deixava escapar um suspiro.
       _ V? – seu tom era cauteloso.
       _ Sim?
       _ Quero que você me prometa que nunca, nunca mesmo, nunquinha da silva, vai falar com o Bernardo sobre isso.
      _ É claro que não vou falar! – falei num tom sinceramente ofendido. Como ela podia pensar isso de mim?
      _ Prometa, V!
      _ Flavinha? – continuei ofendida
      _ Prometa! – ela ordenou mostrando que não iria desistir enquanto eu não prometesse.
    _ Eu prometo, Flávia Almeida de Viana! Eu nunca, nunca mesmo, nunquinha da silva vou dizer a Bernardo que você gosta dele. Satisfeita? – falei com uma ponta de irritação.
      _ Agora sim. – ela falou sorrindo e se deitando novamente
Flavinha era a amiga mais leal que eu tinha. Era muito madura para seus vinte e um anos e sempre estávamos juntas. Cursava o 5º semestre de Geologia na mesma universidade que eu. Ela era bonita e era comum o número de rapazes que me procuravam para saber se ela estava disponível. Sua altura e os cabelos cacheados e muito ruivos chamavam atenção em qualquer lugar que ela entrasse. Seus olhos verdes pareciam esmeraldas e sua meiguice era um atrativo à parte. Eu brincava dizendo que era um abuso tanta beleza numa pessoa só. Mas a maior beleza dela estava mesmo no coração. Era uma pessoa fantástica! Generosa ao extremo! Ficou ao meu lado mesmo quando eu não tinha absolutamente nada a oferecer. Mesmo quando eu estava oca de sentimentos e de vida. Acho que o que me manteve presa a realidade, entre outras pequenas coisas, foi a amizade incondicional de Flavinha – uma clara provisão de Deus – por quem eu era agradecida até os últimos dias da minha vida.
     Flavinha agora dormia serenamente. Estiquei a mão para afagar seus cabelos. Eu estava disposta a ajudá-la quanto a Bernardo. Minha oração era para que eu não metesse os pés pelas mãos e acabasse atrapalhando tudo. Em silêncio, pedi a Deus sabedoria para ajudá-la sem interferir.
      Meus sonhos foram confusos. Renato estava lá de novo e como sempre, sorrindo para mim. Eu tentava me aproximar dele, mas à medida que eu chegava perto ele se afastava de mim, como sempre fazia, como se houvesse um campo de força que o empurrava para longe. Só que dessa vez Bernardo estava lá também, abraçando Flavinha. Os dois me chamavam para longe de Renato, mas eu não queria sair dali. Queria achar um jeito de romper aquele campo de força e correr para os seus braços. Era frustrante vê-lo e não poder tocá-lo. Fiquei parada me deliciando com seu sorriso. Até que ele começou a sumir. “Não, Não vá! Fique mais um pouquinho, por favor.” Eu gemia desesperada esticando a mão em sua direção, mas era inútil. Ele já havia sumido.
     _ Não! – gritei no quarto ainda escuro.
     Flavinha levantou-se assustada com o grito.
     _V? Tá tudo bem? O que houve?
     _ Nada. Não foi nada. Foi só um sonho, desculpe. Volte a dormir. – falei esfregando o rosto.
     _ Tem certeza?
     _ Tenho, amiga. Durma, por favor.
     Ela deitou e não demorou muito para que eu ouvisse novamente seu ressonar suave. Eu me virei, enterrei a cara no travesseiro e comecei a chorar baixinho. “Você precisa aprender que haverá dias bons e maus também. Você não precisa se apegar a nenhum deles, apenas vivê-los um de cada vez.” A voz da minha mãe ecoava na minha cabeça em meio a minhas lágrimas. “Eu vou melhorar” – eu repetia – “Haverá dias bons e dias maus”. “Um dia de cada vez”.
Não sei quanto tempo durou meu choro, mas eu acabei adormecendo novamente e sonhando de novo... com Renato, é claro.