segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Capítulo 02 - Mimoso

Capítulo 02

Mimoso


 _ Arhhhhh! – Flavinha deu um longo e barulhento bocejo – Ai, V! Você se importa se eu tirar um cochilo? Tô morta de sono. Não dormi nadinha a noite passada.
_ Claro, amiga. – falei sorrindo – Quer passar para o banco de trás? Eu dou uma paradinha no acostamento.
_ Não precisa. Eu pego a almofada e durmo aqui mesmo. – ela disse já se ajeitando para dormir.
Estávamos a caminho de Mimoso de Goiás. Não era muito longe. Ficava a 150 km de Brasília.
A semana havia passado muito rápido. A reação de meus pais quando comentei na mesa do jantar que iria ver a Margarida no final de semana foi, no mínimo, engraçada. Meu pai tossiu engasgando com o suco e minha mãe ficou parada com a boca aberta. Eu sorri da cena.
            _ Como assim? – minha mãe perguntou.
            _ Ela me convidou e eu aceitei. Espero que não tenha problema.
       _ Não! – meu pai falou, limpando a garganta, antes que minha mãe pudesse articular qualquer pensamento – Problema nenhum, filhinha. Alguém vai com você?
            _ Vou convidar a Flavinha.
            _ Mas... mas... – minha mãe estava visivelmente atônita com a notícia. Eu parei para olhá-la e esperar que ela conseguisse terminar a frase, mas foi meu pai quem continuou.
          _ Mas que surpresa boa, V! – ele disse segurando a mão de minha mãe com uma clara indicação de que ela deveria se acalmar. Eu sorri e continuei comendo.
           _ É realmente uma surpresa, filha! – minha mãe finalmente conseguiu falar.
Sabia que eles ficariam felizes com a novidade, mas não imaginava que fosse chocá-los dessa maneira. Talvez, pelo meu longo tempo de recusa em procurar a família de Renato, ou pelo tempo de ausência de atividades sociais, não sei, o fato é que a notícia abalou principalmente minha mãe. Fico imaginando se ela associava essa nova mudança à nossa conversa de sábado à tarde e se, em algum momento, ela se arrependia disso. É claro que não! Minha mãe não se arrependeria por me ver vivendo novamente. Imagino que ela só tenha ficado um tanto apreensiva com essa atitude. Viajar depois de tanto tempo de reclusão... Seria mesmo uma boa ideia? Agora até eu ficava me questionando. Mas como já havia dado minha palavra a Margarida, iria cumpri-la até o final.
            Com a Flavinha foi mais fácil. Sempre era mais fácil com a Flavinha! Ela abriu um sorriso bem largo, que iluminava todo seu rosto coberto por minúsculas sardas.
            _Que horas você passa lá em casa? – ela disse com simplicidade.
           Saímos sábado, bem cedo. Passei no prédio da Flavinha pouco depois das seis horas da manhã. Ela desceu com uma cara de sono que dava pena. Senti-me culpada por tirá-la tão cedo da cama. Quando ela me contou que havia passado a noite acordada terminando um trabalho da faculdade para entregar na segunda-feira no primeiro horário, me senti pior ainda. Ela não queria deixar nada para fazer no final de semana. Queria aproveitar a viagem, como ela mesma dissera, ao máximo.
          Enquanto ela dormia tranquilamente ao meu lado, minha mente voava em todas as direções. Eu pensava no meu encontro com a família de Renato. Como eu reagiria ao vê-los? Não queria chorar. Não mesmo! Iria me concentrar muito para que isso não acontecesse. Mas, e se alguém chorasse? Eu sabia que não resistiria se algum deles chorassem. Imaginar a Margarida com aqueles grandes olhos azuis marejados de lágrimas já me dava um nó no estômago. Pior ainda, se Arthur chorasse? Aquele homem enorme, moreno do sol da fazenda, chorando. Ou se fosse a Érica, esposa de Arthur? Ela era tão linda com os cabelos lisos, quase brancos de tão loiros... Ai meu Deus! Eu não suportaria qualquer um que fosse. Meus olhos se encheram de lágrimas só de pensar. Limpei-os com as costas da mão e fiquei feliz que Flavinha estivesse dormindo. Respirei fundo e repeti a oração que havia feito durante toda semana; pedi a Deus que me desse forças para esse encontro. Não queria estragar tudo com lágrimas e lamentos intermináveis. Eu estava indo até lá para conversar com a Margarida, mas também para que ela me visse e ficasse mais tranquila quanto à minha sanidade.
           Também pensava sobre o teor da nossa conversa. O que realmente Margarida queria comigo? Eu pensei nisso a semana toda e havia chegado a algumas prováveis respostas. A primeira, e também mais óbvia, era que ela queria me consolar. Dizer-me para seguir com a minha vida, essas coisas. A segunda era que ela apenas queria me ver e certificar-se de que eu não havia enlouquecido. A terceira era por saudade mesmo. Ela sempre se mostrou muito carinhosa comigo. Não conseguia chegar a uma teoria diferente dessas que fizesse sentido.
            À medida que avançávamos no caminho era inevitável não me lembrar das nossas viagens. Quase sempre vínhamos com mais dois ou três amigos. A distância ficava menor a cada viagem. Já estava acostumada com a paisagem e com os diferentes cheiros. Nem todos agradáveis, porque era uma região de fazendas e havia muito gado pelo caminho. Mas também havia cheiros maravilhosos. Flores, árvores nativas, a relva molhada pelo orvalho, um rio que acompanhava uma boa parte do caminho... Havia um cheiro bom de nostalgia no ar.
Abri a janela para permitir que cada nota desses aromas entrasse pelo carro. Sorvi cada uma delas, até os desagradáveis. Era engraçada essa reação. Eu lembro que antigamente pedia que Renato fechasse as janelas quando passávamos pelo gado. Ri sozinha da lembrança.
Acho que foi a primeira vez que consegui lembrar-me do Renato e sorrir. Era um bom sinal.
         Chegamos à cerca que circundava a área da casa. Flavinha ainda dormia quando saí do carro para abrir a grande porteira branca. Detive-me um tempo, segurando a cancela da porteira, olhando para a casa grande. Era exatamente como eu lembrava.
          A casa, pintada de um branco um pouco gasto com as várias janelas azuis de madeira cercada por uma grande varanda, era toda ladeada por flores coloridas. Um imenso gramado se estendia por toda a área cercada e algumas árvores lançavam sombras próximas à parte dos fundos da casa. Havia um jardim florido na parte da frente com alguns banquinhos que convidavam para uma conversa agradável ou uma boa leitura. A casa alta, embora tivesse apenas um andar, tinha uma escadaria de pedras que conduzia para a porta principal. Era uma casa bem antiga e pertencia a família de Renato há gerações. Já tinha sido restaurada algumas vezes, mas eles sempre mantiveram seu estilo original.
Algumas janelas estavam abertas e as cortinas de renda branca tremulavam com o vento. Fiquei parada me deliciando com o encanto daquele lugar. Parecia um conto de fadas!
Percebi que havia alguém na escada olhando em nossa direção.
Abri a porteira e entrei no carro. Com o barulho da porta a Flavinha acordou, esfregando os olhos.
_ Já chegamos? – ela disse com a voz rouca enquanto eu guiava o carro pela porteira. Percebi uma movimentação na casa.
Duas crianças muito loiras agora corriam do jardim em direção à casa e uma mulher igualmente loira abraçava a maior entre os joelhos enquanto pegava a menor no colo. Pude identificar cada uma das pessoas. A pequena, que já não estava tão pequena, era a Renata. Da última vez que a vi, tinha dois anos. Recebera esse nome em homenagem ao tio e talvez por isso fosse tão apegada a ele ou, ele a ela. Era uma criança adorável e tagarela. Falava o tempo todo. Sempre quando chegávamos, ela assumia o colo de Renato e começava uma interminável sessão de histórias e perguntas. Era no colo dele que ela ficava até pegar no sono à noite e era para cama dele que ela corria logo de manhã. Às vezes ele tinha que acordar muito cedo só para ouvir as histórias dela. Lembro-me que acordava às vezes com o barulho dos dois brincando no jardim. Ela estava maior agora e os cabelos, no mesmo tom de louro da mãe, estavam grandes até quase a cintura.
A criança maior era Olívia. Deveria estar com seis anos agora. Era mais quieta e tímida. Demorava quase um dia inteiro até que ela se adaptasse com nossa presença e começasse a agir normalmente. Era assim até com Renato. Seus cabelos eram um pouco mais enrolados que o da irmã, mas eram igualmente louros
Érica, a mãe das meninas, era uma mulher meiga e carinhosa. Cuidava das filhas e mantinha-se ao lado de Arthur como se sempre tivesse pertencido àquele ambiente. Não fora sempre uma mulher do campo. Havia cursado engenharia na faculdade, mas desistiu, sem o menor esforço, de um bom emprego para dedicar-se à família e à vida pacata na fazenda. Lembro de uma conversa, certa vez, onde ela me contou sobre sua convicção em Deus de que era mesmo isso que deveria fazer quando engravidou de Olívia. Ela até poderia continuar a trabalhar, já que moravam na fazenda e, com certeza, contaria com a ajuda da sogra na educação de sua filha, mas sustentava a ideia de que a responsabilidade de criação dos filhos pertencia aos pais. Seus valores cristãos eram muito fortes. Arthur, embora nunca pedisse para ela escolher entre as duas coisas, ficou felicíssimo com a decisão. Ela nunca demonstrou nenhum traço de arrependimento por essa escolha.
Nós tínhamos iniciado nosso namoro há pouco tempo quando Renata nasceu. Lembro que Renato me contou emocionado, que o irmão daria o nome da criança em homenagem a ele. Lembro de ajudá-lo a escolher uma roupinha azul para o “Renatinho”, como ele mesmo chamava. Quando chegamos à fazenda e ele viu aquela bonequinha de cabelos louros, não acreditou.
_ É uma menina?! – ele disse olhando o pequeno bebê de macacãozinho cor-de-rosa. Todos sorriram e o irmão passou a criança para o colo dele.
_ Renata, irmão. Sua sobrinha.
Ele olhava para ela emocionado. Eu fiquei num canto do quarto admirando toda a união daqueles dois. Uma família tão unida que eu não conseguia imaginar que faltasse mais ninguém ali. Até Érica estava tão perfeitamente integrada àquele ambiente que me senti uma alienígena.
Mas eram também uma família generosa. O relacionamento entre Margarida e Érica era maternal. Elas se davam muito bem. Margarida não era uma pessoa difícil de relacionamento. Diria mesmo que ela era a sogra que toda mulher sonhava. Nunca interferia no relacionamento dos filhos nem na criação das netas. Era amorosa e sabia respeitar o espaço de cada um. Era aquele tipo de pessoa que fazíamos questão de estar perto. A viuvez precoce não trouxe a ela nenhum traço de amargura, pelo contrário, estava sempre sorrindo e disposta com um sorriso meigo para qualquer pessoa que precisasse.
Dirigi devagar pela estradinha que levava até a casa. Quando chegamos estavam todos na escada. Parei o carro, respirei fundo enquanto a Flavinha já tinha pulado do carro e abraçava todo mundo. Desci devagar, cautelosamente, e aproveitei a festa que a Flavinha estava fazendo para me aproximar. Margarida veio andando rápido em minha direção e me abraçou com força.
_ Oi V! – ela me soltou, sorrindo satisfeita por me ver. Seus olhos não estavam nem marejados. Parecia mesmo feliz.
_ Oi Margarida! Que saudade... – suspirei e ela me puxou de volta em um abraço bem apertado.
Abracei Érica, que ainda estava com Renata no colo olhando para mim de forma desconfiada. Acho que ela não se lembrava mais de mim. Era tão pequena quando a vi pela ultima vez! Olívia me deu aquele abracinho tímido, por pura educação.
Estávamos conversando sobre a viagem, sobre meus pais, sobre Brasília, mas o olhar de Renata estava me intrigando. A essa altura Érica já havia colocado-a no chão, mas ela encarava, com um olhar confuso. Então me abaixei e chamei-a para meus braços. Ela veio correndo.
_Você se lembra da tia? – perguntei enquanto ela me abraçava.
_ “Lembo”. – ela disse com aquela vozinha de anjo, mas continuava com o mesmo olhar. – Cadê o tio “Enato”? – ela perguntou inocentemente.
_ Venha, filha. – Érica interrompeu, correndo para pegá-la no colo. – Desculpe, V. Nós já tivemos essa conversa, filhinha. - ela falava com Renata.
_ Eu sei. – ela parecia confusa – Mas a senhora disse que o tio “Enato” não podia vir me visitar.
_ E não pode, filha. – a conversa era bem baixinha, mas eu conseguia ouvir.
_ Então porque a tia V pode e ele não? Deus não deixa? – ela disse com a voz triste.
_ Desculpe, V. – Érica levava Renata para dentro, seguida por Olívia de perto, enquanto explicava alguma coisa, bem baixinho, para filha menor.
_ Então querida, vamos tomar café? – Margarida disse ignorando completamente o que acabara de acontecer. Ela nos abraçou, eu de um lado e Flavinha do outro, enquanto nos guiava para dentro da casa.
A casa era exatamente como eu lembrava. O piso de madeira escura dispunha móveis pesados, também de madeira, pela sala enorme. Havia vasos de flores coloridas por toda a sala. Caminhamos até a cozinha que já estava com a mesa posta.
Sentamo-nos na mesa grande de madeira coberta por uma toalha de algodão cheia de flores amarelas. Margarida parecia muito feliz com nossa presença. Na mesa havia pães de queijo, um bolo lindo que parecia ser de milho, alguns pães caseiros, leite, café, suco, manteiga, geleias coloridas... Um típico café da manhã de fazenda. Sabia que ela não teria feito tudo sozinha. Eles tinham alguns empregados que ajudavam nas tarefas da casa e alguns que trabalhavam com as plantações e com o gado da fazenda. Eu não sabia exatamente quantos eram. As duas mulheres que trabalhavam na casa eu conhecia pelo nome, dona Rosa e Mariana.
Dona Rosa era a exímia cozinheira da casa. Era amiga inseparável de Margarida. Fora ela que ajudara na criação de Arthur e Renato quando o pai deles morreu. Ela ficou tão ligada à família que agora era como parte dela. Mariana havia chegado um pouco antes de eu conhecê-los. Veio trabalhar com seu marido na fazenda assim que se casaram. Era uma moça tímida e falava muito pouco. Cuidava da casa com muito capricho, mas desviava o olhar sempre que olhávamos em sua direção. Tinha aquele jeito típico de gente do interior.
O assunto foi o mais ameno possível. Conversávamos sobre o tempo que ficamos longe com o cuidado de não tocarmos no assunto do acidente ou no nome de Renato nem uma única vez. Fiquei imaginando quanto tempo duraria aquela trégua.
Érica e as crianças vieram se juntar a nós e Renata parecia mais animada agora. Ela falou com aquela vozinha engraçada de criança pequena trocando algumas letras, mas eu percebia uma certa tensão em Érica cada vez que Renata começava a falar.
_ Onde está o Arthur? – perguntei despreocupada.
_ Ele foi à cidade buscar algumas vacinas para o gado, mas já deve estar voltando. – Érica disse olhando para o relógio da parede. Ela virou-se para a janela prestando um pouco mais de atenção – Acho que é ele!
Eu me forcei a ouvir algum barulho diferente, mas não percebi nada, até que consegui ouvir o motor da picape bem longe. Perguntei-me se ela realmente tinha ouvido alguma coisa ou se simplesmente havia sentido a presença de seu amor. Meu coração se apertou um pouco com esse pensamento.
Foi impossível não pensar em como teria sido minha vida com Renato. Estaríamos sentados naquela mesma cozinha, nossos filhos sentados próximos às primas, em uma conversa agradável e animada de família. Suspirei.
_ Nem acredito no que o vento trouxe! – Arthur irrompera pela porta da cozinha com sua voz de trovão. Eu me levantei e ele já estava lá, me abraçando. Ele era enorme! Meu rosto ficou comprimido em sua camisa. Ele tinha aquele cheiro agradável e familiar. Não era perfume, era o cheiro dele mesmo.
_ Deixe-a respirar, Arthur! – Margarida dizia com um sorriso na voz.
_ É tão bom ver você de novo, Tampinha! – ele falou esfregando minha cabeça. Ele me chamava assim desde o primeiro dia em que me viu. Eu não era tão pequena assim – tinha 1,66 m de altura – mas qualquer pessoa ficava pequena perto do Arthur. Lembro perfeitamente no dia que Renato me trouxe para conhecer sua família. Érica estava bem adiantada na gestação do bebê que ainda não tinha nome, mas como eles já tinham a Olívia, esperavam que agora fosse um menino.
Estavam todos de pé na sala quando chegamos. Ele estava com o braço ao redor dos meus ombros e me apresentou com um largo sorriso.
_ Pessoal, essa é Virgínia, minha namorada.
Foi Margarida a primeira a vir me cumprimentar. Deu-me um abraço afetuoso e me disse ao ouvido: “Bem vinda à família”. Senti-me confortável com ela. Depois, Érica se apresentou com Olívia presa à sua perna, escondendo o rosto. Depois veio Arthur. Abraçou-me apertado e se virou para Renato:
_ Ela é meio tampinha...
Renato partiu para cima dele simulando uma briga. Todos estavam rindo, até eu. Confesso que meu riso era de puro nervosismo. Fiquei neste estado durante todo o trajeto da viagem imaginando como seria o encontro. Nem sei quantas vezes repeti os nomes na minha cabeça com medo de errar ou esquecer algum. Renato sorria abertamente do meu nervosismo e isso me deixava ainda mais nervosa. Quando chegamos na casa ele parou a brincadeira e ainda dentro do carro passou o braço pelo meu ombro.
_V, não tem o menor sentido você ficar nervosa. Minha família vai te amar “de cara”. – ele falou sorrindo. Eu suspirei tentando jogar o nervosismo para fora pelas narinas. Abaixei a cabeça e apertei as duas mãos respirando devagar.
_V! Calma, por favor! – ele disse curvando-se para mim e segurando meu rosto entre as mãos. – Você acha que eu te traria aqui se soubesse que eles não te aceitariam? Eles sabem de você. Aliás, o Arthur está cansado de me ouvir falar de você. Ele vai ficar aliviado por te conhecer.
_ Aliviado? Como assim? – perguntei intrigada
Ele pareceu sem graça no início, talvez até constrangido. Soltou meu rosto e ficou brincando com a chave do carro ainda na ignição.
_ É que ele disse que queira conhecer logo você para ter certeza... – ele parou. Parecia estar ficando vermelho. Como ele não continuou, tive que perguntar.
_ Certeza do quê? – a essa altura eu não estava nem um pouco nervosa. Tudo tinha se dissipado e eu era toda curiosidade.
_ Bem, ele quer saber se eu realmente encontrei minha... – ele parou de novo. Aquilo estava ficando insuportável! Mas dessa vez achei mais seguro esperar que ele concluísse. – Minha Rebeca. – ele disse visivelmente constrangido.
Eu não lembrava de tê-lo visto tão constrangido antes! Era adorável! Sorri para ele e baixei os olhos, ainda surpresa com sua reação. Ele se virou novamente, puxando meu rosto para perto do dele e falando com suavidade.
_ Eu quero muito, muito mesmo, ser o seu Isaque.
A imagem de Isaque indo a uma terra distante buscar a sua prometida Rebeca fez meu coração derreter. Não estava mais nervosa. Estava segura e aquecida, completamente inebriada com a presença dele e com a perspectiva que se desenhava.
Embora nosso namoro só estivesse no início, já nos conhecíamos há algum tempo.
Conhecemo-nos em uma festa de aniversário na casa de Dudu. Ele trabalhava no IBAMA no mesmo setor que o tio Vitório, pai de Dudu, e havia ficado amigo da família. Assim que cheguei à festa percebi sua presença. Ele era difícil de não se perceber. Era alto, tinha a pele com aquele tom moreno de alguém que fica muito tempo exposto ao sol, mas o que realmente me chamou atenção foi o sorriso dele. Ele tinha um sorriso deslumbrante. Lembro-me de ter olhado para ele algumas vezes até que nossos olhos se encontraram. Depois disso, passei a evitar olhá-lo, mas quando acontecia, ele sempre estava me olhando também. Ficamos nesse joguinho por um tempo, até que achei muito constrangedor e me escondi na cozinha. Não era meu estilo ficar flertando em festas. Não fiz isso na adolescência e não iria começar agora com vinte anos na cara! Eu nem sabia nada daquele sujeito! Era bom parar por aqui antes de incentivar alguém a fazer ou pensar alguma coisa que não poderia ir adiante.
Sempre fui muito rigorosa quanto a relacionamentos. Aprendi que o namoro cristão deveria ter algumas regras, e a primeira, a Bíblia ensinava em 2 Co 6:14-16 “Não se ponham em jugo desigual com descrentes. Pois o que têm em comum a justiça e a maldade? Ou que comunhão pode ter a luz com as trevas? Que harmonia entre Cristo e Belial? Que há de comum entre o crente e o descrente? Que acordo há entre o templo de Deus e os ídolos? Pois somos santuário do Deus vivo.”.
Quanto a isso eu era categórica e não permitia precedentes. Essa minha postura já era conhecida dos meus “pretendentes” da faculdade. Eles já tinham até uma piadinha quando percebiam que alguém estava ficando interessado: “Essa aí? Pode esquecer. Ela só namora pastor.” Não era verdade – não precisava ser pastor – mas eu deixava que a piada rolasse porque assim me evitava problemas.
Eu não havia namorado muito, mas os meus dois únicos namorados eram cristãos maduros na fé. Eu não me importava com a solidão, me importava muito mais em estar com a pessoa errada e em ficar administrando problemas desnecessários. Importava-me mais ainda, em não desobedecer a uma ordem tão clara que a Bíblia me ensinava, por isso eu esperaria tranquila a pessoa certa que Deus havia separado para mim. Graças a Deus, nessa área, eu era bem resolvida.
Quando saí da cozinha, vasculhei a sala procurando por aquele par de olhos intrigantes para fazer o melhor ar de “geladeira” possível para que ele percebesse que eu, realmente, não estava interessada, mas não o encontrei. Foi Dudu que veio falar comigo.
_ E ai?! Sumiu! Onde você estava?
_ Na cozinha, por quê?
_ Meu pai quer te apresentar um amigo dele.
_ Como assim?! – perguntei surpresa. Não era um comportamento comum do tio Vitório.
_ Na verdade, foi ele que pediu para que meu pai te apresentasse. – Dudu estava com aquele sorrisinho malicioso no canto dos lábios.
_ Pelo amor de Deus, Dudu! O que o tio Vitório está aprontando? – perguntei já apavorada.
_ Sabe aquele cara grandão que estava lá no canto da sala? – fingi não saber do que ele falava – Tá bom, V! – ele sorriu de forma irritante – Eu sei que você sabe de quem eu tô falando. – fechei a cara para ele e apertei bem os lábios com uma fúria nos olhos, que o fez recuar da piadinha sem graça
_ Ei, calminha! – ele disse estendendo as mãos como quem se rende.
Nossa conversa foi interrompida pela mão do tio Vitório em meu ombro.
_Oi, V, querida!
Quando me virei perdi o chão. Ele estava acompanhado daquele rapaz enorme que ficara me encarando durante a festa. Era ele que queria me conhecer?
_ Gostaria de te apresentar meu amigo do trabalho. – ele disse se virando para o rapaz – Renato, essa é Virgínia, uma garota muito talentosa da nossa igreja. Ela é do ministério de louvor. Toca violino e violão. Muito valiosa para nós! – ele disse sorrindo e me abraçando. Pelo canto do olho, pude ver a risadinha maliciosa do Dudu e isso me irritou profundamente. Pelo menos ele me apresentou como cristã e isso já eliminava qualquer ideia que o... – qual era mesmo o nome dele? Renato? – poderia ter a meu respeito.
_ Muito prazer. – ele estendeu a mão grande para mim. – Então você é do ministério de louvor?
_ Sim. – disse sem graça com a voz dele. Era suave e melodiosa, não combinava com a figura de homem grandalhão!
_Que legal! Tremo só de me imaginar dirigindo um louvor. Posso pregar para uma multidão, mas dirigir o louvor... – ele fez uma careta de medo. Será que eu tinha ouvido direito? Aquela nova informação já mudara completamente a perspectiva das coisas. Conversamos o restante da festa e descobri que ele lecionava na Escola Bíblica Dominical para os jovens da igreja dele. Rimos bastante, falamos bastante e marcamos de nos ver numa outra ocasião.
Descobri, muito tempo depois e, claro, quase que sob tortura, que ele havia feito muitas perguntas a meu respeito antes de pedir para me conhecer e que partilhava dos mesmos valores que eu na escolha de seus relacionamentos. O desenrolar disso foi quase uma sequência natural dos fatos. Víamo-nos com frequência, apesar de sermos de igrejas diferentes e descobrimos muitas coisas em comum. Depois de um período de conhecimento e oração, já estávamos namorando.
Tudo parecia tão distante e, ao mesmo tempo, tão presente! Acho que esse lugar estava mexendo com minhas memórias.

Conversamos muito tranquilamente. Agora que Arthur havia se juntado a nós eu precisei repetir algumas informações dos meus meses de ausência. Era impossível olhar para ele e não lembrar imediatamente de Renato. Eles eram muito parecidos exceto pelo cabelo. Os de Arthur eram mais anelados e compridos que o de Renato. Arthur era mais velho. Eles tinham cinco anos de diferença. Renato teria feito vinte e oito anos em agosto. Pensar nele no tempo passado me deu uma pontada no coração e no estômago, mas o ambiente era alegre e festivo e eu escondi minha dor bem no fundo do peito.
          Quando terminamos o café da manhã, fomos ao carro para pegarmos nossas mochilas. Minha mãe havia mandado presentinhos para todos e eu os distribui assim que nos instalamos em um dos quartos. Margarida nos deixou à vontade para descansarmos um pouco o que Flavinha achou ótimo. Ela se jogou em uma das camas com dossel que ficava no quarto com janela para o jardim e dormiu quase que instantaneamente. Eu fiquei arrumando nossas roupas. Como iríamos passar o final de semana com eles, não queria ficar remexendo a mochila para encontrar nada. Ia acabar amassando minhas camisetas.
          Fiquei um tempo olhando o sol pela janela ficando cada vez mais alto. Podia ouvir a voz de Arthur falando com alguns funcionários da fazenda sobre a vacinação do gado. Inspirei aquele ar puro até encher os pulmões completamente. Como era bom estar aqui de novo! Estava muito feliz por ter aceito o convite de Margarida e me senti meio boba quando me lembrei de toda a minha relutância em vir até aqui. Peguei meus óculos de sol e fui dar uma volta.
            Quando entrei na sala, vi o quadro que tinha pintado para Margarida. Parei um pouco para apreciá-lo. Eu havia retratado sua casa. As flores estavam tão lindas que eu não resisti. Como sempre fazia, meu estojo de pintura estava no carro e, coincidentemente, havia comprado algumas telas para um trabalho da faculdade que ainda estavam no bagageiro. Faltava só meu cavalete, mas quanto a isso Arthur improvisou um que funcionou maravilhosamente bem. Eles pareciam se divertir enquanto eu pintava. Os peões passavam com mais frequência perto de mim e lançavam olhares furtivos ao meu trabalho. Renato pegara um livro e se sentara por perto enquanto eu pintava. Não deixei Margarida ver até que o quadro estivesse pronto. Ela ficou maravilhada com o resultado! Eu não podia negar o talento que Deus me dera e ficava feliz em poder presentear as pessoas. Sempre tive um pendor para arte e quando foi época de escolher meu curso na faculdade, não tive a menor dúvida. Fui cursar Artes Plásticas na Universidade de Brasília. As lembranças me fizeram sorrir.
             Saí pela porta da frente e comecei a andar vagarosamente pelo gramado. Pensei que seria doloroso estar ali, mas estava sendo mais agradável do que eu podia imaginar. As lembranças que vinham não eram dolorosas. Tinham uma ponta de nostalgia, como se tivessem acontecido há muito tempo. Agradeci a Deus em minha mente. Lembrei das orações que fiz durante toda a semana, pedido que Ele me fortalecesse para esse momento e não podia imaginar que fosse outra coisa senão resposta de oração. Fiquei sinceramente agradecida a Deus.
           Continuava andando sem muito destino. Fiquei imaginando o que as crianças estariam fazendo porque eu podia ouvi-las sorrindo. Segui o barulho e cheguei ao pomar atrás da casa. Elas estavam colhendo frutas com a Margarida.
            _ Quer ajudar a gente tia V? – Renata perguntou, correndo para mim com a mãozinha levantada.
         _ Claro, meu amor! – segurei sua mãozinha dela e saí quase correndo para acompanhar seus passinhos ligeiros em direção a uma bonita árvore de carambolas.
         _ Vovó, o que vamos fazer com todas essas carambolas? – Olívia perguntava enquanto arrumava as frutas num cesto.
          _ Suco, querida. Vamos fazer suco para o almoço.
        _ Eu não gosto de suco de “caiambola”. – Renata disse sacudindo a cabeça muito loira. – É muito azedo!
         _ Eu gosto. – Olívia disse olhando para mim. – E a senhora, tia V? Gosta de suco de “carambola”? – ela disse enfatizando a última palavra e olhando para Renata, que pareceu nem perceber o porquê daquilo
          _ Eu gosto, Olívia. Gosto muito mesmo. – ela falou já se acostumando com minha presença.
         _ Muito bem, meus amores. Levem as carambolas para dentro que a vovó vai conversar um pouquinho com a tia V. – Margarida disse entregando o cesto para Olívia e três carambolas nas mãos de Renata.
           Meu estômago ficou frio de repente. Era a conversa que eu estava esperando.
         Caminhamos juntas em silêncio em direção às árvores mais distantes. Enfiei as mãos nos bolsos da calça, numa atitude que eu reconhecia como nervosismo.
           _ Que bom que você veio. V. Estávamos com muitas saudades de você.
            _ Eu também estou feliz por estar aqui.
           Andamos mais um pouco, em silêncio e paramos ao lado de uma enorme mangueira. Havia um tronco velho, caído, encostado nela. Ela se sentou e indicou o espaço ao lado dela para que eu sentasse também.
           _ Você deve estar se perguntando o que eu queria falar com você.
           _ Na verdade, sim.
           _ V, estive conversando com sua mãe e confesso que fiquei preocupada com o que ouvi.
           Encolhi-me. O que será que minha mãe havia dito?
      _ Margarida, você conhece minha mãe... Sabe que ela é um pouco exagerada – tentei parecer despreocupada.
          _ Não penso que ela tenha exagerado, V. Confesso que para alguém que não te conheça direito, você parece estar muito bem. – ela disse sorrindo.
        _ Margarida... – suspirei procurando as palavras certas – Sinceramente estou bem melhor, agora. O fato de eu estar aqui deve significar alguma coisa. – sorri.
          _ Verdade, querida. Não esperava que você viesse realmente e fiquei muito feliz quando li seu e-mail. Isso me deixou mais animada com as possibilidades da nossa conversa.
          _ Como assim?
           _ Eu já te contei como foi que fiquei viúva?
           _ Não. – mas Renato já havia me contado – Foi uma doença, não foi?
          _ Sim. Ele teve um ataque cardíaco fulminante. Ele nunca havia demonstrado nenhum tipo de sintoma que nos desse um alerta. Foi muito repentino para todos nós.
            _ Imagino.
             _ Mas não era disso que eu estava falando. Referia-me ao depois da morte de Vicente.
             _ Não. Quanto a isso você nunca disse nada.
            _ Eu queria te contar como foi perder um grande amor... para mim. – ela suspirou e continuou sem pausa. – Ele foi meu primeiro namorado. Não era comum namorarmos por muito tempo naquela época, então nos casávamos muito cedo. Casei-me com dezessete anos e Vicente tinha vinte e um. Ele era lindo, muito carinhoso e trabalhador. Sentia-me nas nuvens por tê-lo por perto. – seus olhos estavam longe agora. Numa época em que eu não conseguia enxergar. – Vivíamos muito felizes e apaixonados. Ele cuidava da fazenda junto com o pai, trabalhava muito, mas sempre tinha tempo para mim. Quando fizemos três anos de casados eu engravidei de Arthur. Nem preciso dizer o quanto ele ficou feliz com a chegada do primogênito. Não estávamos evitando ter filhos, mas por alguma razão eu não conseguia engravidar, então você pode imaginar a euforia dele. Quando fomos apresentá-lo à igreja ele era todo orgulho. Segurou o bebê o tempo todo e não deixou nem o pastor segurá-lo na apresentação. – ela sorriu da lembrança.
            _ Quando engravidei de Renato foi uma surpresa! Como eu tinha problemas para engravidar eu não tomava nenhuma precaução. Então nossa família estava completa. Éramos muito, muito felizes. Estávamos com planos para uma viagem com os garotos. A fazenda agora estava totalmente sob o comando dele. Meus sogros já haviam falecido há alguns anos e ele não tinha irmãos. Com todo o trabalho ele havia aumentado a quantidade do gado e da plantação. Deus estava nos abençoando financeiramente e ele queria desfrutar um pouco dessas bênçãos viajando conosco. Estávamos muito animados com essa possibilidade.
            _ Um dia eu estava sentada na varanda fazendo alguma coisa que não consigo me lembrar o que era – sua voz agora era rouca e embargada – Ele estava voltando para casa montado no cavalo. Eu o avistei e acenei para ele. Ele acenou de volta, mas levou a mão ao peito em seguida... – ela fez uma pausa para se recompor. – Foi a última coisa que o vi fazer. – agora uma pausa mais longa. Imaginei o quanto custava para ela tocar naquele assunto doloroso. – Ali estava eu, V. Com trinta anos de idade, dois filhos pequenos; Arthur com dez e Renato com cinco anos; e sem o grande amor da minha vida. – ela parou de novo.
          _ Sinto muito, Margarida! Deve ter sido horrível para você. – falei passando o braço pelos seus ombros.
             _ Foi muito mais que horrível, V. – ela estava quase sussurrando. Respirou fundo e continuou. – Eu fiquei fora do ar por alguns dias. Não levantava da cama para nada. Não conseguia olhar para os meninos... – sua voz era carregada de dor. Eu nunca havia parado para pensar nisso. Talvez por nunca imaginar que uma pessoa como Margarida fosse capaz de ficar triste. Ela sempre parecia tão serena e feliz! Eu estava vendo um lado dela que eu jamais vira até aquele dia. Não fiquei perto dela depois do acidente e, embora soubesse de sua dor, eu não havia presenciado realmente seu luto. Afaguei suas costas, mas permaneci em silêncio.
           _ A Rosa foi muito importante para nós nesse período. – ela continuou – Ela cuidava dos meninos e do restante da casa. Eu me recusava a receber visitas, nem o pastor eu queria ver. Fui definhado aos poucos... Sabe quem me trouxe de volta? – ela olhou para mim com os olhos azuis molhados pelas lágrimas – Renato. Ele estava brincando na escadaria da entrada de casa e caiu. Ouvi o choro dele, desesperado, e voltei a mim instantaneamente. Corri do quarto e peguei-o nos braços. Ele estava com o braço quebrado. Arthur já estava com ele. Coloquei os dois no carro e dirigi até o hospital. Não pensava em mais nada, só conseguia pensar em Renato enquanto Arthur tentava acalmá-lo no banco de trás. Depois que o médico o viu e colocou gesso em seu braço, fui ficando mais calma e quando dei por mim, estava abraçada com os dois na recepção do hospital, chorando feito louca. Depois daquele dia percebi que não poderia me entregar daquele jeito. – ela suspirou, pousando a mão de leve em meu joelho – Eu era responsável pelos meus filhos, pela vida deles, por seu futuro... Voltei para casa com um novo desafio: ficar de pé novamente. Voltei, aos poucos, ao cotidiano. Alguns dias, inevitavelmente, eu chorava muito, em outros, passava sem muita dor. Fiquei assim por algum tempo.
        _ Um dia, – ela sorriu – lendo o livro de Salmos aqui no jardim de casa, deparei-me com uma passagem que mudou tudo para mim: Salmo 16: 8 “Senhor, Tu és a minha porção e o meu cálice, és Tu que garantes o meu futuro.” Já havia lido aquele versículo várias e várias vezes, mas ele nunca havia falado tanto comigo como naquela manhã. “Tu que garantes meu futuro”. Eu consegui enxergar que era o próprio Deus falando comigo! Ele cuidaria de mim e dos meus filhos! Ele mesmo garantiria meu futuro! Fiquei maravilhada com essa promessa, com esse cuidado de Deus em minha vida. Lembro-me de ter orado, agradecendo a Ele por esse cuidado e pedindo que me ajudasse a crer sempre que Ele estaria comigo, garantindo meu futuro. Não financeiramente, entende? Eu não precisava de bens materiais. Graças a Deus, Vicente havia nos deixado numa situação financeira bem confortável e um administrador muito eficiente que continuava tocando a fazenda com sabedoria. Não era de dinheiro que eu precisava, mas de ser feliz novamente. Foi isso que entendi quando li no Salmo “Tu garantes meu futuro”. Isso era um horizonte promissor de que eu voltaria a sorrir e me alegrar novamente. Fiquei muito feliz com essa possibilidade. Aos poucos, voltei ao normal e lembrava-me de Vicente com amor e não com amargura.
        _ Quando aconteceu com Renato, eu desmoronei. – sua voz ficou tensa de novo – Chorei por dias inteiros! Nem sei exatamente quantos. Não é a ordem natural das coisas. Eu é que deveria ir antes dele. Nenhum pai ou mãe está preparado para enterrar um filho. – ela ficou em silêncio por algum tempo. Agora era eu quem estava chorando. – Pensei que não fosse conseguir dessa vez. Meu coração estava dilacerado, mas foi nesse mesmo versículo que encontrei meu conforto novamente. “Tu garantes meu futuro”. A certeza de que Renato, assim como o Vicente, estava nos braços do próprio Deus, confortou e consolou meu coração. V, eu perdi dois grandes amores da minha vida. – ela falou olhando direto nos meus olhos – Não tenho pretensão de diminuir ou catalogar seu sofrimento. Queria apenas te contar a minha história e mostrar que ainda existe a possibilidade de sorrir depois da tragédia, se soubermos onde procurar. – ela afagava meus cabelos enquanto falava. – Deus nos garante o futuro! Foi assim comigo e, com certeza, será assim com você, se permitir a ação e o consolo de Deus em sua vida. – ela parou um pouco, pensativa. – Você é como uma filha para mim e Renato tinha certeza de que você era a mulher que Deus havia separado para ele. – Margarida ficou de pé e estendeu a mão para mim – Deixa-me te mostrar uma coisa. – ela caminhou até atrás da mangueira levando-me pela mão. A essa altura, meu rosto estava transfigurado pelas lágrimas que eu deixava cair sem o menor constrangimento. Como eu já sabia, a dor de Margarida encontrava eco na minha e eu não precisava esconder nenhum sentimento dela. Não dela. Ela sabia com propriedade o que eu estava sentindo.
            Atrás da mangueira havia três corações entalhados no tronco. O primeiro e mais alto, parecia ter sido feito há bastante tempo, porque estava bem escurecido e trazia as letras V e M de forma grosseira, mas perfeitamente legível. Com certeza representavam “Vicente e Margarida”. O segundo, um pouco mais baixo que o primeiro, era mais caprichado e trazia as letras bem definidas, estava igualmente escurecido, embora aparentasse ser mais novo que o primeiro, e tinha as letras A e E. Arthur e Érica, certamente. O terceiro coração, exatamente ao lado do segundo, era o mais caprichado dos três. Tinha a forma bem arredondada, não parecia muito antigo, e as letras, muito bem feitas dentro dele, fizeram meu coração doer: R e V! Senti minhas pernas desmoronarem e me deixei cair no gramado. Margarida me sustentou e sentou-se ao meu lado. Caí até minha cabeça estar em seu colo. Meu corpo sacudia com a força do meu choro. Ela afagava minhas costas, meus cabelos, meus braços, mas não fazia menção nenhuma de me interromper. Apenas me deixou chorar. Eu apertava sua roupa entre os dedos contra meu rosto para abafar o som do meu desespero, mas continuava chorando. Ela permaneceu em silêncio ao meu lado, apenas murmurando alguma coisa que eu não tinha condições de entender. Não sei quanto tempo fiquei daquele jeito. Quando meu choro foi diminuindo percebi que os murmúrios eram uma oração que ela fazia baixinho. Aos poucos consegui entender algumas palavras como “consola”, “conforta”, “ajuda”... Fui me acalmando aos poucos, então ela começou uma oração, ainda comigo em seu colo, erguendo minha cabeça e me aninhando em seu peito, como uma mãe que acalma uma criança pequena:
           “Senhor, estamos nós duas aqui sofrendo a ausência de Renato. Confesso que não é fácil, mas confiamos em Ti e no Teu poder de nos restaurar completamente. Ajuda-nos a prosseguir sempre olhando para Ti e só para Ti, pois Tu és a nossa força. Leva-nos, Senhor para o Teu esconderijo, põe-nos numa rocha mais alta que nós mesmas. Livra-nos de querer continuar sofrendo e não aceitar o Teu consolo. Renova a nossa esperança de que o Senhor vai nos fazer sorrir de novo. Permita-nos enxergar o nosso futuro, Senhor. Pedimos-Te essas coisas confiadas em teu Filho Jesus, que nos salvou e no Teu Santo Espírito que nos consola. Amém”.
         Estava mais calma, mas ainda continuei naquele abraço reconfortante. Ficamos ali, abraçadas por algum tempo. Quando, finalmente, meus soluços diminuíram, ela diminuiu a pressão sem me afastar e eu levantei a cabeça aos poucos sem fitá-la.
            _ Você vai ficar bem, Virgínia. – Margarida me disse de forma afetuosa, com a mão pousada em meu rosto. – Você fez meu filho muito feliz pelo tempo que vocês estiveram juntos, mas essa história acabou. Tenho certeza que o homem que tiver o prazer, e o privilégio, de conquistar seu coração será perfeito para você. Tão bom quanto foi o meu Renato. – ela sorriu para mim. A generosidade daquela mulher era impressionante!
           _ Obrigada, Margarida. – consegui sussurrar. Depois, com a voz recomposta, falei em um tom mais animado – Só não sei se vou conseguir uma sogra tão maravilhosa quanto você.
            Nos abraçamos, sorrindo.

Quando entramos em casa fui direto para o quarto. Não queria assustar ninguém com aquela cara. Flavinha ainda dormia pesado. Peguei roupas limpas, uma toalha e fui para o banheiro.
            Fiquei no chuveiro pensando em Margarida e em como Deus a havia restaurado, apesar de toda a dor que ela passara. A possibilidade de ser restaurada me enchia de esperança. Não demorei muito no banho dessa vez. Vesti-me, penteei os cabelos, deixando-os soltos nas costas para que secassem, e fui para o quarto. O barulho da porta acordou a Flavinha.
               _V? Que horas são? – disse ela com a voz rouca.
               _ Quase meio dia.
              _ Já? Eu dormi tanto assim? – ela falou enquanto se levantava, percebendo meus olhos vermelhos, vestígio da minha conversa com Margarida.
              _O que houve, V? Você estava chorando?
            Eu dei a volta no quarto e sentei ao lado dela, então comecei a contar toda a história da conversa que tive com Margarida ao lado da mangueira. Contei tudo, mas omiti a parte dos corações na árvore. Não sei se conseguiria falar daquilo sem chorar de novo. Ela me abraçou.
             _ Puxa vida, V! Que legal!
             _ Eu quero te agradecer amiga, por estar aqui comigo. Se você não aceitasse meu convite eu não sei se teria conseguido sozinha. Eu estava morrendo de medo de voltar aqui.
              _ Você está se saindo bem, V. – ela sorriu – Agora sou eu quem vai tomar um belo de um banho!
             Esperei que ela voltasse como um pretexto para que meus olhos voltassem ao normal. Saímos juntas para o almoço que já estava com um aroma maravilhoso espalhado pela casa.
            O almoço foi agradável com conversas sobre tudo. As crianças tagarelavam o tempo todo. Até Olívia agora estava falando pelos cotovelos. Érica ajudava Renata com a carne, e Arthur dominava a maior parte da conversa com sua voz de trovão. Foi muito divertido.
            À tarde, Arthur nos convidou para vermos a plantação de milho. Seguimos com ele na picape até milharal. Flavinha viu algumas pedras diferentes e saiu catando para seu catálogo da faculdade. Ela cursava geologia, e tinha um olho clínico para essas coisas. Fiquei sozinha com Arthur.
            _ Tava com saudade de você, Tampinha. – ele sorriu apertando meus ombros com força e me tirando do chão.
              _ Eu também, Arthur. – falei um pouco sufocada.
           _ A Érica me falou sobre a Renata, quando você chegou. – ele falou sem o menor rodeio. – Nós havíamos conversado com ela, mas ela entendeu que você também... – ele segurou a palavra. Eu não esperei que ele terminasse.
              _ Eu imagino que deva ser difícil para vocês. Como explicar isso para uma criança tão pequena?
             _ É um pouco complicado, mas foi Olívia que nos deixou mais preocupados. Ela chorou muito por vários dias. Pensamos que ela não ficaria tão abalada, já que Renata era muito mais apegada a ele, mas ela sofreu muito também.
              _ Não foi fácil para ninguém... – sussurrei
            _ É... – ele ficou em silêncio. – Mas é bom ter você por aqui de novo. Você sabe que a gente te ama e que você é da nossa família. – ele disse me dando um empurrão de lado que me fez desequilibrar.
            _ Eu sei disso. Eu também amo todos vocês. – tentei empurrá-lo do mesmo jeito, mas ele sequer saiu do lugar.
            _ Quero que você me prometa uma coisa. – ele falou olhando para o chão.
            _ Claro. O que é?
             _ Quero que prometa que irá trazer o seu próximo namorado aqui para a gente conhecer.
           Eu olhei para ele incrédula. Namorado? Como eu poderia pensar nisso? Meu coração ainda estava sangrando. Fiquei em silêncio, e foi ele que continuou.
          _ Sei que você não pensa nisso agora, Tampinha, mas você irá conhecer um cara legal e vai ter uma família. Eu só quero que você saiba, e ele também, que você é uma pessoa especial, porque tem um pai, duas mães, um irmão mais velho, uma... o quê? Cunhada ou irmã? – ele coçou a cabeça – E duas sobrinhas. – ele falou naquele tom divertido que era a cara do Arthur. – Promete para mim?
             Suspirei rendida e sem acreditar no que estava ouvindo. Arthur era mesmo muito especial. Ele tinha um jeito único de encarar a vida que às vezes assustava... Renato também tinha um pouco dessa simplicidade. Ele fez uma pausa, talvez percebendo o choque na minha postura, e continuou.
_ Eu não preciso te dizer isso, porque eu tenho certeza que ele não te deixava esquecer. Renato te amava! – ele disse olhando de novo para o chão – E ele não queria que a sua vida acabasse com você ainda viva. Se fosse comigo e Érica eu iria querer que ela fosse feliz. – ele agora olhava direto para mim – Entende? Não é que você precise arranjar outra pessoa, mas você precisa saber que tem essa opção. – ele parou pensativo e sua voz ficou mais baixa – Nós não queremos que você fique imaginando que cobraremos de você uma postura diferente, do tipo “luto eterno”. Nós sabemos que você o amava, tanto quanto ele a você, mas Renato não está mais aqui e você sim. Não seria justo, nem com você nem com a memória dele. – o silêncio se prolongou e desta vez fui eu quem falou, num suspiro de coragem.
_ Prometo que se – e eu deixei bem claro a condicional – um dia eu encontrar um cara que realmente valha à pena, eu o trarei aqui.
           _ Obrigado, Tampinha! – ele esfregou minha cabeça – E aí ruiva? – ele gritou para Flavinha. – Se for precioso o que você achou aí, eu não vou deixar você levar.

O restante do final de semana foi igualmente agradável. Foi com tristeza que me despedi de todos. Meu carro estava cheio de presentes para os meus pais e os pais da Flavinha: queijos, milho-verde, pães-de-queijo, desenhos das meninas, toalhinhas bordadas... Coisas de família.
             Meu final de semana havia sido muito mais que divertido, havia sido libertador.