sexta-feira, 20 de maio de 2011

Capítulo 05 - Graça

Capítulo 05

Graça

Estávamos a caminho da casa de Bernardo. Na última semana íamos até lá todos os dias quando voltávamos da faculdade. Rafael estava se recuperando muito bem e seu rosto já estava quase livre dos hematomas. Ele teria que ficar com o gesso por mais vinte dias, e as faixas nas costelas por mais tempo.
         Rafael estava ambientado na casa de Bernardo, embora cada ação de Dona Maria Elisa, ou de qualquer outro membro da família de Bernardo em seu favor o deixasse muito constrangido. Ele já estava andando, com um pouco de dificuldade em virtude das dores que ainda sentia nas costelas, mas já se movimentava por todo o apartamento.
             Seus pais tiveram sucesso com a busca pela casa. Conseguiram uma casa muito maior que a anterior por um bom preço, mas que precisava de alguns reparos. Os jovens da igreja estavam trabalhando em mutirão para concluírem logo a reforma. Por causa disso, seus pais, além de extremamente agradecidos, estavam muito animados e esperançosos por um recomeço mais tranquilo para toda a família. A casa era próxima a escola das crianças menores. Para Rafael não mudaria muita coisa, já que sua escola ficava no centro de Brasília. A diferença era que ele poderia usar o metrô para ir e vir da escola.
           Chegamos na hora do lanche da tarde. Dona Maria Elisa estava nos esperando. Flavinha agora era presença obrigatória. Bernardo e ela estavam muito próximos. Embora nenhum dos dois tivesse se declarado ainda, cada dia ficava mais evidente os sentimentos mútuos.
            A conversa estava animada. Bernardo estava nos contando sobre o progresso na nova casa. Flavinha fazia perguntas completamente atenta a tudo que Bernardo dizia. Ela “bebia” cada palavra com entusiasmo. Eu permanecia quieta, prestando atenção. Percebi que Rafael estava muito calado remexendo com uma colher o leite com Nescau em sua caneca.
_ Algum problema, Rafa? – perguntei baixinho. Ele levantou a cabeça surpreso com a interrupção em seus pensamentos.
_ Nada, V. – falou de forma evasiva. Seu rosto era de tristeza.
_ Como “nada”, Rafa? – continuei no mesmo tom – Você já não me engana. – completei com um sorriso.
Rafael deu um suspiro alto e Bernardo virou para olhá-lo, então ele falou.
_ Sabe o que é? Eu não entendo o que vocês estão fazendo por nós. Vocês nem conheciam a gente antes, e estão fazendo tudo isso por minha família! – seus olhos eram sinceros enquanto sua mão boa fazia gestos no ar enquanto falava. – Eu me sinto sem graça de receber tanta coisa e não ter nada para dar em troca. – sua voz baixou o tom e ele parecia emocionado – Minha família nunca vai conseguir pagar nada do que vocês estão fazendo por nós.
O silêncio tomou conta da cozinha. Ninguém esperava por essa reação de Rafael. Dona Maria Elisa, que estava de pé mexendo nos armários, sentou-se conosco. Ela fez menção de falar alguma coisa, mas Bernardo segurou sua mão fazendo-a se calar. Ele olhou para Rafael com um olhar intenso.
_ Então agora você está pronto pra entender sobre a graça redentora de Jesus. – o silêncio que se seguiu na cozinha era o ambiente certo para a maior e melhor de todas as conversas que Rafael já participou.
_ Rafa, lembra da história que te contei sobre Jesus? – Bernardo continuou com paciência. Rafael assentiu. – Então... Jesus deu sua vida por amor, sem que nós realmente merecêssemos. Nós éramos pecadores e, como pecadores, inimigos de Deus. Lembra que te expliquei sobre o pecado que nos separa do amor de Deus? – Rafael continuava calado, mas sua expressão agora era de vívido interesse – Pois é isso! Deus é completamente Santo e não pode andar junto com o pecado. Quando pecamos, ficamos separados de Deus. Mas Deus quis reparar essa distância mandando Jesus para nos salvar. – Rafael cruzou o braço bom por cima do gesso e se aproximou mais da mesa. Sua postura era de quem estava interessado e queria ouvir mais – Jesus não foi morto pelos soldados romanos por não conseguir escapar deles. Ele foi morto porque quis nos resgatar. Estava nos planos dEle desde o início da criação. Nós jamais mereceríamos isso, mas ainda assim Ele fez por amor. – Bernardo enfatizava as palavras – Agora, imagine comigo, alguém Justo, completamente Santo, sem nenhum pecado, morrendo no lugar de um injusto, pecador, para que essa pessoa pudesse ter uma nova vida, livre do pecado e ficasse novamente perto de Deus. – os olhos de Rafael estavam brilhando – Consegue imaginar? Só um amor tão grande consegue explicar isso. E se você é um injusto, um pecador que não tem nada para dar para um Jesus Perfeito e Santo, o que você pode fazer? – Rafael balançou a cabeça curvando os lábios sem ter uma resposta – Nada! – Bernardo continuou – Absolutamente nada! Como você pode pagar uma coisa que não tem preço? A vida de Jesus é um sacrifício muito caro. Nada que a gente faça vai conseguir pagar esse preço. Nada mesmo! Sacrifícios, promessas... qualquer coisa! Nada conseguirá pagar o preço de tão grande salvação. – Bernardo parecia brilhar! As verdades bíblicas fluíam com facilidade. Estávamos todos muito quietos ouvindo. Bernardo continuou.
_ A comparação entre o que você sente com relação a nossa família nem cabe aqui, porque o que Jesus fez por nós é muito maior, mas agora você percebe o que significa o fato da salvação ser de graça? Não é de graça porque não vale nada, mas é de graça porque não temos como pagar, nem se quiséssemos conseguiríamos. – Bernardo suspirou. Rafael estava de cabeça baixa. Quando levantou estava com os olhos cheios de lágrimas.
_ Eu entendo! – ele sussurrou. – Agora eu entendo! – suas lágrimas caíram livremente, sem nenhum constrangimento. – Eu não merecia nada disso! Eu quero isso para mim! Preciso de Jesus em mim! – Bernardo ficou de pé abraçando Rafael e nós nos juntamos a esse abraço, muito emocionados.
Rafael orou confessando seus pecados e entregando sua vida para Jesus salvar. Ele estava radiante! Feliz por finalmente entender a salvação em Cristo que Bernardo sempre tentara lhe explicar, mas que ele não conseguia aceitar nem entender. O fato de não precisar dar nada em troca nunca fizera sentido para ele até aquele momento. Estávamos muito felizes!

A casa da família de Rafael estava finalmente pronta. Todos estavam lá para ajudar na mudança. Rafael permanecia sentado, muito a contragosto, à sombra de uma mangueira, nos fundos do quintal. Queria ajudar, mas seu braço ainda estava no gesso – que agora estava todo riscado com a assinatura dos jovens da igreja – e seu peito ainda estava enfaixado.
              Levamos todos os móveis para dentro e íamos colocando onde a mãe de Rafael nos indicava. A casa era bem confortável e ventilada, diferente da antiga. Até a atmosfera do lugar era diferente. Havia uma esperança no ar que era quase tangível. A família estava muito feliz com essa mudança porque não era apenas uma mudança física, mas uma possibilidade de recomeço.
             Mesmo com a recuperação de Rafael, a vizinhança antiga continuava a olhá-lo com desconfiança, além disso, os membros de sua antiga gangue estavam sempre por perto oferecendo drogas ou testando sua paciência. Eram constantes as provocações e os limites de Rafael estavam perigosamente sendo testados.
          Agora a família tinha a chance de recomeçar uma vida nova. Havia uma igreja da mesma denominação que os pais de Rafael frequentavam há algumas quadras da nova casa. O comércio também era mais bem estruturado e a casa ficava próxima a estação do metrô.
            Passamos toda a manhã nos ocupando com a mudança e a arrumação da nova casa. A mãe de Rafael havia preparado uma galinhada muito saborosa para o almoço. Comemos sentados à sombra da mangueira. As risadas e as conversas rolavam soltas. Dudu, como sempre, contava suas histórias que faziam todos rirem. Bernardo e Flavinha estavam sentados juntos, conversando baixinho. Eu sentei-me sozinha olhando tudo aquilo.
             Estava muito feliz com meus amigos, meus projetos, com Rafael, com o final do meu curso – que seria em duas semanas – com minha vida voltando ao normal...
Naquele momento senti uma falta absurda de Renato. Estava feliz, mas não completa. Com minha formatura se aproximando era difícil não pensar nele. Tínhamos planos...
No fundo, eu estava com medo dessa data. Tinha medo de a ferida reabrir, e eu ter que passar por todo o processo de cura de novo. E pior! Tinha medo de, dessa vez, não conseguir mais. Estava remexendo a comida do meu prato sem perceber que já estava chorando.
_V? – Flavinha havia se aproximado sem que eu percebesse – Você está chorando, amiga?
_ Não se preocupe, Flavinha. – falei limpando meus olhos e colocando os óculos escuros. Tinha certeza que meu nariz estava vermelho. – É só o de sempre, mas eu estou bem. – sorri para ela. Ela me abraçou com carinho.
_ Conta sempre comigo, tá? Sempre. – ela sussurrou no meu ouvido.
_ Eu sei, amiga. Eu sempre sei que posso contar com você! – falei sinceramente agradecida. – Com você e agora acho que... com mais alguém... – falei sorrindo. Ela sorriu de volta e me olhou nos olhos com o rosto corado por baixo das sardas. Seus olhos verdes cintilaram de alegria.
_ Ai, V! – ela falou apertando minhas mãos – Acho que ele também gosta de mim.
_ Que bom amiga! – “Droga de segredo”, pensei. – Espero que dê tudo certo para vocês. Eu amo muito os dois.
Ela me abraçou de novo, mas dessa vez era um abraço muito animado, cheio de expectativas.
Como eu queria contar para ela e acabar com tudo aquilo! Mas como estava tudo caminhando bem, como deveria ser, decidi que a melhor coisa a fazer era manter minha promessa feita aos dois. Se depois – quando eles finalmente descobrissem que eu sabia de tudo o tempo todo – eles quisessem me matar... Sorri ainda abraçada a Flavinha.
Terminamos o dia com uma roda de louvor à sombra da mangueira. Cantamos, oramos e agradecemos a Deus por esse novo recomeço da família de Rafael. Alguns vizinhos vieram se juntar a nós e se apresentavam com simpatia e hospitalidade.
Os irmãos de Rafael já estavam enturmados com as outras crianças da rua. Criança sempre faz isso com mais facilidade que nós, adultos. Elas são muito mais simples e descomplicadas. Corriam pela rua e exploravam as novidades.
Rafael estava muito feliz e podíamos ver isso claramente. Ele sorria e nos abraçava o tempo todo. Estava agitado e precisávamos lembrá-lo, constantemente, de que ele precisava se comportar, por causa das costelas que ainda necessitavam de repouso. Sua felicidade era contagiante!
Saímos de lá felizes. Todos nós.
A graça, que havia alcançado a vida de Rafael e que também havia alcançado cada um de nós, nos enchia o coração. Sabíamos que não poderíamos fazer nada para pagar esse imenso amor que Jesus demonstrou por nós. Tudo o que fizéssemos tentando, sequer chegaria perto.
Todo o trabalho que fazíamos, toda a dedicação ao próximo não era com intuito de acumularmos boas obras. Era tão somente gratidão e obediência a esse Deus que nos havia resgatado.
Há muito tempo havíamos compreendido que a graça de Deus era suficiente. E era isso que mantinha minha sanidade quando pensava em Renato.
A minha graça te basta”.